segunda-feira, 26 de julho de 2010

Sobre o sentido da viagem na Cidade Feliz em Patrizi

Sobre o sentido da viagem na Cidade Feliz em Patrizi

São Paulo
21/12/2009


A formação da cidade feliz é construída no âmbito da abstração, mas não é especificamente literal, com todas as exigências necessárias para o sê-lo. Há uma filosofia por detrás, como também a descrição de um lugar ainda não existente, porém a obra carece de outros aspectos que, em geral, caracterizam as utopias. Ela não constitui sua cidade enquanto já situada geograficamente, nem possibilita uma narrativa de lembranças fascinantes já vividas, tão pouco permanece na estrutura de diálogo conforme a maioria do gênero. Daí a dificuldade de classificá-la enquanto próxima às outras utopias da época. Até a sua proximidade com a política aristotélica pode ser relativizada a ponto de a mesma ser somente um instrumento para subvertê-la . Porém o carácter excessivamente detalhado e descritivo traz concretude à Cidade Feliz, emblema relevante para expor a sua concepção enquanto uma ética proposta, muito próxima do presente pelas suas semelhanças com este, e por isso, uma prática nem tão transformadora, no entanto contrária às instituições conterrâneas, uma cidade possível, apesar de ideal e feliz . É também por meio da cidade, que o idealismo repercute no humanismo enquanto um potencial da razão .

O início da obra introduz a intenção da construção da cidade, enquanto um projeto para satisfazer a sede da natureza humana. Natureza esta, dotada de vontades cegas que corrompem a sua grandeza. O corpo, juntamente com a alma, constitui o ser. A alma é independente e auto-suficiente, não é molestada pelos apetites insaciáveis do corpo e se mantém intrínseca. Ao passo que o corpo depende do auxílio da convivência com outros corpos para ser mantido. Convivência a qual é caracterizada como natural e própria da afetividade da espécie humana, relacionar-se é próprio da natureza do ser para a sua sobrevivência corporal. Pode-se inferir disto que a natureza humana para Patrizi também abrange o corpo, pois o defeito é denunciado na mesma como sendo a carência de ponderações externas, diferentemente da perfectibilidade e completude da alma. O autor discorre sobre as comedidas sociais por meio da descrição de uma Cidade Feliz, assim como discorre sobre a conservação corpórea por meio da descrição de um ser saudável. Análoga ao ser, a cidade possui uma extensão que necessita de manutenção.

A quietude de tais anseios se fundamenta no bem. Pois nele se tem repouso e fim. A concepção de finitude nos objetivos humanos é dada para que estes preservem um sentido ideológico e não se esvaiam no vão da falta ou do vazio. A satisfação e realização dos desejos é o sumo bem, ou felicidade. Ideais que apóiam o ser pelo fato de serem alcançáveis e possíveis aos cidadãos, sendo essa felicidade o máximo bem e o contentamento da vida. É disto que surge também o sentido da projeção desse lugar perfeito afim de saciar os próprios desejos e, com isso, alcançar o bem necessário e suficiente. É a partir, pois, da premissa que o homem pode possuir a plenitude, que Patrizi explica uma ética para isso: por meio da virtude, da hierarquia implícita nos três graus do corpo, divididos em sete partes. A primeira e superior é a alma por si mesma composta da virtude especulativa; a segunda são as virtudes morais que abrangem a temperança e continência, dividida em quatro partes cujas denominações estão na alma sobre o corpo, na alma cuidando do que é necessário ao corpo, no próprio corpo e por fim, naquilo que é necessário ao corpo; e na terceira estão a virtude que diz respeito à liberalidade e justiça, mais aplicadas no âmbito da servidão, onde se encontram os instrumentos para o que é necessário à conservação do corpo e o tempo de duração da ligação da alma ao corpo. Virtudes as quais da terceira parte em diante serão detalhadamente explicadas na descrição das funções e ofícios distribuídos na criação da cidade: desde o cuidado alimentar, a localização territorial, a legislação e organização política, até a segurança, a economia e a religião. Vemos nisso, a importância da alma sobre o corpo, paralelamente à virtude do cidadão sobre a cidade, enquanto aquilo que os mantêm, necessariamente. Assim como no capítulo terceiro o filósofo esclarece a sua característica de possibilitar o corpo e propiciar a vida:

“É opinião de Platão, de Aristóteles e de todos os outros filósofos e médicos, o que, além disso, sensatamente se prova, que tanto tempo vive o homem quanto a alma está ao corpo ligada, e a alma, tão longamente com o corpo habita, quanto dura o vínculo que fortemente unidos os mantém.”

O instrumento priorizado, e anterior às descrições de outros na Cidade Feliz, para que a quietude dos anseios ocorra e se conserve a beatitude é o espírito. Ele vincula a alma ao corpo, e sua manutenção se dá por meio da própria cidade. Ela é construída com a finalidade de preservá-lo, pois ser justamente o responsável quem eleva os estados viciantes do corpo às virtudes especulativas da alma. Elevação não diretamente falando, porém reconhecida no tratamento adequado do corpo, ou seja, na boa organização da cidade e sua estrutura distribuída para atender as necessidades dos cidadãos. A virtude já distribuída nos ofícios da cidade, portanto, provém do espírito enquanto mantido “quanto dura o vínculo que fortemente unidos os mantém”, a alma e o corpo. Pode-se, ainda, associar tal espírito enquanto uma força ou potência que sustenta a vida da Cidade Feliz, ao passo que é dele que se iniciam as virtudes da mesma, como por exemplo: uma boa atmosfera sem corromper o ar e o sangue (que constituem o espírito) denota uma boa localização à cidade, assim como a alimentação suficiente para não corromper a digestão, etc.

É a partir do corpo saudável por meio do espírito, portanto, que as necessidades se realizam nas relações sociais. A noção de necessidade é uma moral que perpassa por toda a obra, a ética dos cidadãos está na justa medida, trazida também pela suficiência. E implicado por ela está o acréscimo do amor próprio para a defesa da cidade. Mesmo que caracterizado anteriormente como natural, o convívio com outros homens nasce da necessidade de sobrevivência da própria organização social. Disto se dá, inclusive, a resistência coercitiva nos momentos de guerrilhas . Logo, a necessidade da milícia é comparada pelo amor à pátria, em sua defesa e coesão .

Em continuidade com o tratamento dado ao corpo, está a ordem de governo e suas instruções priorizadas pela experiência da velhice. O legislador é aquele quem já alcançou a beatitude ou prudência, e agora a demonstra como exemplo para os cidadãos, pois sua virtude a afastar os “humores maléficos” os quais trazem “dor e martírio” . Ele, o legislador, assim como os outros componentes da cidade (os camponeses, os artífices, os mercadores, guerreiros, magistrados e sacerdotes), colaboram com a cidade com suas virtudes. Apesar de não serem considerados cidadãos, os camponeses, artífices e mercadores, compõem a parte do terceiro grau da virtude: o que serve à liberalidade e à justiça:

“E porque estes artífices, para prepararem tais alimentos, têm necessidade de muitos e vários instrumentos, segue-se uma outra multidão de artífices, de cortadores de pedra, de pedreiros, de lenhadores e de ferreiros, os quais vão fabricando as coisas necessárias àquelas primeiras. Todas estas coisas, umas mais e outras menos, concorrem para a criação dos espíritos, para o remédio da vida, contra aquele primeiro defeito, que ocorre quando eles não são gerados.”

A ocupação em demasia pelo trabalho, não os possibilitam de alcançar a ponderação, daí não obterem o título de cidadãos, por não viverem “sem impedimentos” para equilibrarem seus ofícios com a ociosidade e conquistarem uma justa medida. A maneira conforme descreve a classificação dessas três classes que ajudam a compor a cidade é discorrida com a leveza de quem ainda não enxergava defeitos na miséria e na servidão desses patamares pelo autor considerados como inferiores.

O sentido ético percorrido pela Cidade Feliz também pode ser encontrado na formação do cidadão, na medida em que a partir deste se forma a cidade . Patrizi enumera três meios para a aquisição da virtude ao cidadão: pela natureza onde estão as aptidões naturais, pelo hábito onde se purifica os apetites devido a leis instituídas e pela razão para além dos costumes estabelecidos, especulada tanto nas leis quanto na natureza. O cidadão é livre para conquistá-las, pois conta com a vida adequada de acordo com a boa estrutura de sua sociedade para a vida feliz “conforme a virtude perfeita” . Ele [o cidadão] a alcança com o mesmo caminho percorrido na definição dos patamares de virtude, a temperança, a prudência e a justiça; os quais devem ser, em primeiro lugar, honestos, depois necessários e úteis para a permanência da cidade , então denominados cidadãos, ou parte citadina da cidade que se encontra nem somente na paz nem somente na guerra . Seu paraíso, pois, é alcançável em vida, prazerosamente, sendo que prazer é concebido com a idéia de contentamento e suficiência na obra, articulados na virtude moral, ou seja, nos hábitos do corpo. Mesmo que servo da alma, o corpo está mais em contato com o mundo exterior do que ela, por isso o filósofo argumenta o dever de cuidar primeiramente dele:

“E tendo em vista que o homem é dois, corpo e alma, assim a alma também é duas, racional e irracional. E como o corpo é feito para a alma, sendo ela anterior no tempo, assim a parte irracional, que com o corpo se mescla, serve à racional e põe-se em ação primeiramente, o que não faz a razão, que é a última perfeição do homem. Por isso, é apropriado que o legislador, o quanto possa, tenha, primeiramente, cuidado com o corpo de seus cidadãos e depois, com a alma.”

Ao trecho acima citado pode se utilizar a argumentação sobre outra passagem em que Patrizi enfatiza a importância do estudo das interdependências depositadas nesses dois aspectos difusos do ser (a alma e o corpo). É quando o autor pronuncia a importância da primeira impressão entranhada em nossa memória. Onde relata como seria a educação dos filhos e recusa “pinturas lascivas” e “comédias e poemas semelhantes”, competindo à alma, proibir o corpo do contato com coisas “viciosas e desonestas”. A prioridade no contato com coisas condutoras ao bem e não aos vícios configura a boa utilização dos sentidos, visão e audição principalmente, para o registro imediato enquanto marco de aprendizagem. O desejo de saber a razão das coisas é despertado pela música e pintura, sensíveis ao gosto apresentado aos sentidos. Porém a curiosidade iniciada pela especulação é que apreende a virtude intelectual de desenvolver plenamente as imagens dos sentidos . O termo chave aqui é a especulação, já citada muitas vezes no texto do autor, e muito aproximada à própria filosofia. Pois quem leva o desejo pela arte à perfeição é a mesma, a filosofia. Assim como Patrizi articula também, que os dois ensinamentos devem ser instruídos pela leitura, utilizando-se da gramática para entendê-los. A virtude intelectual especulativa, portanto, encontrada no âmbito da alma, da aprendizagem filosófica do espírito, e porque não, da própria felicidade.

Pois a virtude intelectual também é associada ao estado mediano por se referir inclusive a mais uma conservação pública da cidade , além de se assemelhar à educação humanista . À justa medida, argumentado no penúltimo parágrafo da obra, Patrizi dispõe a música (aprendizado ideal) não somente como um instrumento do aprendizado dos filhos como também da causa da “delícia e júbilo”, da “alegria” aplicada nos banquetes e nos lares.


BIBLIOGRAFIA

PATRIZI, Francesco. “A Cidade Feliz”. In: In: Revista Morus Utopia e Renascimento. Nº 1, 2004.

MORAES Jr, Helvio Gomes. “Percorrendo a Cidade Feliz: uma leitura da utopia patriziana.” In: Revista Morus Utopia e Renascimento.

MORAES Jr, Helvio Gomes. “A Cidade Feliz: a utopia aristocrática de Francesco Patrizi”. In: Revista Morus Utopia e Renascimento. Nº 1, 2004.





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