segunda-feira, 26 de julho de 2010

Imitação e instrução em L. B. Alberti

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO
Campus Guarulhos
Disciplina: HISTÓRIA DA FILOSOFIA DA RENASCENÇA I
Professor Responsável: EDUARDO KICKHOFEL
Aluna: Cristilene Carneiro da Silva
Curso de Filosofia – Noturno


Monografia sobre arte e ciência no renascimento italiano:

IMITAÇÃO E INSTRUÇÃO EM LEON B. ALBERTI

A PARTIR DE SUA OBRA: “DA PINTURA”

SÃO PAULO
27/06/2010

A sugestão de uma ordem estrutural no livro de Alberti propicia uma leitura de seu pensamento com relação às artes miméticas e as ciências. Ao considerar a perspectiva e a geometria ótica como bases de apoio da arte de pintar e procedê-las primeiramente em “Da Pintura”, infere-se a precedência das mesmas frente à formulação dos conceitos mais propriamente no âmbito da estética tais como “imitação” e “dignidade”, descritos somente na segunda parte. Mesmo com influências clássicas que polarizam a arte e a ciência numa hierarquia aristotélica, reconhece-se que o autor não deixa de entrelaçar o fazer artístico e o científico por meio de formulações técnicas que abrangem os dois aspectos. Onde nem somente o conceito e a teoria, nem somente a expressividade artística são suficientes, mas sim o todo sob o olhar de pintor, a “minerva mais gorda” desejada pelo autor. E ela não estaria exatamente nessa abrangência do pintor como alguém que não é tão somente matemático nem simplesmente imitador?

“Que as coisas sejam assim demonstra cada pintor quando, inspirado pela natureza, põe-se à distância do que está pintando como que à procura do vértice e do ângulo da pirâmide de onde pensa que pode contemplar melhor as coisas pintadas.”

Em sua primeira parte do livro “Da Pintura”, escrito por volta de 1435, Leon Baptista Alberti se dedica à geometria e às cores por meio de um sistema de ótica por ele explorado e exposto. A fim de predispor recursos e ferramentas para a técnica da pintura, o autor expande um estudo específico de tal arte a partir da segunda parte do tratado. Pioneiro nesta época a apresentá-lo enfatizando a técnica do pintor, Alberti dissocia a pintura de outros estudos e não mais a interpreta somente enquanto um instrumento para os mesmos, mas sim a condiciona enquanto um objetivo do artífice, particularmente dito. Dividida em três aspectos fundamentais para uma boa pintura, a segunda parte articula características que a arte de pintar possui: circunscrição, composição e recepção de luzes. Na qual a primeira se refere aos traços e superfícies de cada parte do quadro, a segunda à maneira como estas partes são dispostas em conjunto e a terceira na ilustração do volume por meio da importância das cores para retratar a luz no quadro tendo como ponto de partida o branco e o preto para isso, donde variariam todas as outras. A terceira parte aborda a formação do pintor e sua respectiva ética e de ofício.

O processo da imitação para o autor é dado mais detalhadamente a partir da segunda parte do livro, mesmo já tendo introduzido alguns trechos referente à natureza e à dignidade em seu prólogo e explicitado na primeira parte o quanto a imitação não se trata somente de pura copiosidade do real e sim de uma melhor aplicação mental e dimensional do olhar, que retrata não somente os movimentos do corpo como também os da alma. A mímesis na pintura mantém uma relação com o conhecimento. Porém nem a matemática ou a perspectiva doadas inicialmente esgotam a natureza e o homem, estas ciências fazem parte de um pressuposto fundamento da arte que insere o ser e a história no mundo, mas concomitantes com tal olhar a mais do pintor. Mesmo que geometria e copiosidade se inter relacionem, há o olhar aperfeiçoado do artífice para dispô-los num quadro. Essa articulação da realidade na obra se expande, assim, para além da natureza e suas naturalidades e imperfeições bem como aquém de matematizar minuciosa e exatamente o real, a imitação percorre então a mesma direção que a beleza teria em Alberti: de um naturalismo, abrangendo desde a realidade até a matemática que a funda, à um espiritualismo ontológico, digamos assim para alcançar a dimensão da alma movida por uma ótica e olhar mais profundo e subjetivado em cada pintor. Eis a “certeza de visão”, imergida dos objetos de acordo com o que se pode alterar. A impressão da pintura é reforçada enquanto uma imagem da pintura construída pelo olhar individual que é introduzido neste plano de circunscrição, depois composição e recepção de luzes. Não é seu tema primordial ser um matemático no livro, mas sim escrever como um pintor, conforme ele próprio escreve.

Neste aspecto de correlações entre o real e natural juntamente com o que é previamente calculado, dado por meio da mimética pictórica, poderia se dizer que ela funciona como o citado “olho alado” o qual não somente copia a realidade, mas a flexibiliza por meio de comparações. Seja comparando-as com as grandezas e perfeições da geometria, seja com o natural e belo da realidade. A arte mantém-se, porém, humanamente construída por esse movimento de devir no olhar imitador, incluindo o conhecimento das coisas conforme a percepção, a qual também é modificada. Numa reconstrução do mundo, do divino e do próprio homem, a imitação desvenda algo sob as aparências e a exibe por meio da percepção. Não sendo somente um naturalismo, por mais que caminhe nesta função de dignidade e adequação, a mímesis acompanha o reconhecimento do pintor em sua obra, uma vez que é produzido por seu próprio espírito e aprofundado e refletido pelas sensações da alma da obra.

Tal “movimentação da alma” também se insere num contexto histórico, e não somente ontológico. Diante da função da pintura utilizada somente enquanto um artifício iconográfico e valorizada religiosamente muito mais do que por sua técnica em si, no período medieval, a partir de Ghiberti a construção histórica passa de descrita para interpretada e contextualizada, ligando fatos entre si e os estruturando conforme um papel de historicismo na imitação, mais do que de beleza, conforme a tradição. Porém em Alberti a história se extende mesmo que ainda alcançando funções clássicas, como a teatralidade, por exemplo:

“Cada um, pois, com dignidade, tenha os movimentos desejados do corpo para exprimir todos os movimentos desejados da alma e, para as grandes perturbações da alma, sejam proporcionais os grandes movimentos dos membros. Que esta regra comum de movimentos se observe em todos os seres vivos.”

É a ação do exemplo, nos contada por meio da história compreendida no quadro que traz este grau instrutivo à mímesis. Aqui aparece também o espectador enquanto participante desta ação, que não é somente narrativa, mas vivenciada visualmente por quem contempla o quadro e é transformado por ele, além de informado. Cecil Grayson na introdução e comentário sobre o tratado também concorda com tal afirmação:

“Com Alberti a pintura entra inteiramente no âmbito da cultura humanística e se torna expressão visual de uma concepção harmoniosa da vida e do mundo que deleita e instrui todo aquele que com ela entra em contato.”

Aqui poderíamos nos distanciar dos efeitos renascentistas para remeter Alberti ás suas influências clássicas como, por exemplo, a mimética de Aristóteles, o qual possui uma definição muito próxima deste grau transformador de quem assisti a uma tragédia e sofre a catarse grega.

Não há dúvida que o teor modificador não está somente na cópia. A dignidade compartilha não somente com a imitação exata do real, mas com a situação da alma, seus respectivos estados. A expressividade de cada sentimento vivido. Cada gesto se adéqua à cada personagem em um determinado contexto histórico em que são inseridos, assim como é a relação entre cada parte do quadro, sua superfície e seu desenho na proporção. O importante é o trabalho técnico depositado sobre os objetos, e não apenas a simples existência deles enquanto constituintes da obra. A variedade, portanto, não está relacionada apenas com a quantidade de coisas colocadas no quadro, ela também abrange a maneira criativa de pensar a qualidade dessa variação e a maneira que a mesma será relevante à história do quadro:

“A maior obra do pintor não é um colosso, mas uma história. A história proporciona maior glória ao engenho do que o colosso.”

A super valorização da cor, que permeia todo o decorrer do livro, é essencial para entender essa denotação qualitativa na mímesis. Pois assim como Thomas Leinkauf, em seu artigo sobre o humanismo na renascença, identifica na forma o papel do traço e do desenho, poderíamos inferir na cor evidenciada por Alberti a importância do conteúdo, como sendo aquilo que traz o real, propicia por meio das sombras a existência temporal e eleva à obra uma substância real e espacial por meio da impressão de relevo, para além do opaco e plano, ou em outras palavras, do formal:

“O desenho demonstrou desde sempre uma afinidade com o esforço definitório analítico do entendimento através de sua forma expressiva de distinguir e de modular. Desenho e forma estão completamente vinculados um ao outro, e isto ocorre também quando o contorno linear é substituído por um contorno feito de pigmentos coloridos. Trata-se, enfim, somente do aspecto definitório-formal do contorno no desenho. O primado do desenho vale em todo caso tanto para o Renascimento nascente quanto para o Renascimento tardio: um desenho ou um conceito de desenho que procura com isso tomar também padrões valorativos de cor, para dar corpo às formas divididas pelas linhas.”

E, principalmente: a cor possibilita a visão relativizada e flexível, de movimentação que Alberti tanto ressaltara, quase que numa oposição ao traço que delinea e define. Com isso abre-se espaço para a imaginação do espectador e suas variedades nos olhares e nas sensações, como se acompanha também nas palavras de Leon Kossovitch em sua apresentação a uma das traduções editadas do livro de Alberti:

“Com o claro-escuro, o pintor imita a natureza e, assim, instrui, comove e agrada o espectador, adquirindo fama; para isso, familiariza-se com as artes liberais e é empenhado e diligente no ofício.”

É importante ressaltar este objetivo do pintor almejado pelo autor “Da Pintura”. Pois se a criatividade subjetiva do artífice é explorada, não é em função unicamente da beleza ou de sua originalidade, mas principalmente em função de dispor à multidão, uma história bem visível e instrutora. A história é quem universaliza a pintura e sua importância, a ênfase dada ao pintor não é algo particular ou estético, mas inclusive ético, como discorre na última parte do livro, afim de evidenciar tal papel social:

“Vem a seguir a composição dos corpos na qual reside toda a fama e engenho do pintor. Algumas das idéias tratadas na composição dos membros são comuns aqui. Convém que no seu conjunto os corpos, pelo tamanho e ofício, sejam adequados à história.”

É a visão que pontua esse papel da mímesis enquanto histórica e informativa, pois por meio do que se vê e de como se vê que propiciamos o real. O ponto de vista da arte é dado por meio de seu objeto: a história, para que assim a mesma (a arte) não se torne mera fantasia puramente estética e promova uma função dentro da cidade e de uma ética que promova uma vida mais feliz. A pintura imitará assim, muito mais as atitudes futuras ou exemplares, e por isso moverá a alma, do que a realidade como se encontra:

“Prosseguindo, a história comoverá a alma dos espectadores se os homens nela pintados manifestarem especialmente seu movimento de alma. Faz a natureza – nada há mais ávido do seu semelhante que ela – com que choremos com os que choram, riamos com os que riem e soframos com os que sofrem.”


BIBLIOGRAFIA:

ALBERTI, Leon B. Da Pintura. Trad. de Antonio da Silveira Mendonça. Campinas: Editora da Unicamp, 1989.

._ KOSSOVITCH, Leon. “Apresentação” In Da Pintura.

._ GRAYSON, Cecil. “Introdução” In Da Pintura.

LEINKAUF, Thomas. Arte como PROPRIUM HUMANITATIS.

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