segunda-feira, 26 de julho de 2010

Contadores do tempo

Num dia imparcial aos outros, continuávamos os três no meu aconchego: o amigo de infância Breno, o tédio e eu parados por ali mesmo até a tal síndrome fenecer. Uma hora depois de jogados muitos passa-tempo desses como filmes, jogos-da-velha e pontinhos alinhados, aquelas linhas de caderno talvez embaralharam meu fiel amigo que reagia e me informava ou formava a respectiva história, na qual relatada por aqui, não deixará de ser uma história falsa ou não, mas que foi testemunhada pelos meus ouvidos.

_ Monotonia percebida por mim apenas hoje_ dizia ele_ tal que me fez lembrar de um grande sono sentido por mim há anos quando fui visitar um parente meu, um velho desalinhado e doente, já falecido. Sono sim, pois o velho Abelardo havia desembestado a palavrear regras mais velhas que a própria regra. Todo poderoso parece que tinha feitiço nos olhos e braços na boca. Porque me contou a sua grande história de vida em dez intermináveis minutos dos quais, entretanto, jamais poderei esquecer. Contava sobre ele mesmo: o velho do jogo se projetou em tudo o que já se viu e se falou.

Bonito era o jeito que Breno, o da infância, contava-me. Diante dos ditos únicos dez minutos presenciados por ele, eu ainda teria mais ou menos uma tarde inteira pela frente pra distrair a agitação e me encostar naquela mesma história. O desafio indagado a ele e a mim mesmo foi se eu também teria a mesma recordação e ainda por cima a crueldade de contá-la a alguém. Pois aqui também estou a me sentir no modo bonito, e vou conforme o meu amigo, referir ao defunto:

_ Mas minha cara _ já começo narrando a primeira interrupção feita pelo meu amigo _ só entenderás porque o homem me foi tão apaixonado nas palavras nostalgicamente narradas, depois de também contá-las à alguém.

“Porque a visão obtida numa maquete chegou a ser minúscula quando comparada com a panorâmica do local onde ocorreu a história escolhida. Largo era o olhar porque a cidade era pequena. Entre duas cidades, quase inseparáveis de tão justas, conseguíamos distinguir apenas porque Gruta era menos povoada que Santos Dummont. Mas ainda existia a imperceptível divisa pertencente a um grupo máximo de nove casas, de tamanho no mesmo padrão, onde apenas uma se destacava neste aspecto por ser bem maior do que as outras e abandonada. Nela nos escondemos durante todo tempo que brincamos por aquelas redondezas. Redondezas se reduz ao único meado de espaço duma estrada de terra onde podíamos correr à vontade e depois entrar na casa vazia. Ou até ao andarmos sozinhos a mirabolar contos de desafios heróicos inventados para incrementar o nosso temor por um súbito matagal ainda não explorado que ficava entre a estrada, na transição das cidades.

Tínhamos uma média de sete a nove anos, sendo três os mais jovens: a pequenina grudada no seu irmão Ivodênis, e mais dois espoletas também irmãos. Havia o primogênito destes últimos, já com oito anos, não tomava conta deles. Então era Corina, de seis anos, quem mais os distraía e os protegia dos maiores, e claro, aproveitava-se para ganhar força com tal desculpa de zeladora para também se defender, principalmente de mim, o mais levado de todos. Pudera, pois eu era o único que tinha dez anos na turma, e isto mais do que bastava para ter o direito de cobrar respeito, adulação e até explorar dos meninos.

As crianças respeitavam, acreditavam nos números da idade por não terem muitos. E no começo, cada ano era tão diferente e descobridor que estar mais avançado neles era, de fato, uma vantagem. Mas eu os enxergava mais como objeto de conseguir cada vez mais benefícios por cima da idade. Passei a usar tanto este argumento que meus olhos realmente envelheciam mais rápido, avancei na frente dos meus dez anos a ganhá-los a fora de quem também já os tinha. Assim crescia, colhia mais depressa, crescia quando repetia isso para meus amigos e quando o poder de minha precocidade aumentava. Conseguia ter até vinte anos dentro dos meus próprios dez e isso já bastava para me resultarem como se fossem contados como trinta. Não corria mais junto com os colegas. Só queria me enfurnar naquela velha casa da rua e meditar sobre as próximas aventuras. Pois tinha de continuar sendo bem ouvido pelos garotos. Mas Corina se fazia de ouvinte para não ser amolada tanto pelos repetidos convencimentos, quanto pelos elogios de colegas feitos a mim. Ela sabia que como conseqüência de sua possível repugnância, viria contrariedades a ela, causaria assim tumulto pra si mesma. Então ouvia.”

_ Mas imagino, Breno _ agora foi a vez da minha interrupção _ que Corina não o desdizia não por ser covarde, mas sim incapaz de o fazer seja por amor à ele, ou por outro sentimento de compaixão. Culpa, não medo.

Mas Breno não deu importância ao meu comentário e continuou a narrar a história do sujeito:

_ Ele podia dizer e desdizer as coisas, era o líder nas brincadeiras e ninguém ria se por ventura tombasse aqui ou acolá. Praticamente uma miniatura de Sócrates, dava as regras de todo o comportamento, briga ou malícia em jogos de esperteza. Uma vez foi apelidado por ela que, no fundo até admirava o poder de persuasão dele, de ‘garoto nota dez’. E, sem perceber o cinismo contido naquele apelido, foi o que ele adotou para as próximas linhas de sua vida.

Passado alguns anos, continuava com a auto-estima miraculosa e intacta. Não deteriorava sua impecável determinação nem nas horas de difíceis adaptações, como quando tinha de ir à Gruta e conversar com pessoas desconhecidas, desconhecidas de sua fama radiante e ter de lhe dar com elas de acordo como elas reagiam, e não como ele queria que reagissem. Mas isto até o inspirava ao modo de agir nas provas escolares de Santos Dummont, onde nunca teve dificuldades. Assim como nas atitudes diante dos pais, das festinhas quando para agradar garotas, Abelardo conseguia lhe dar com qualquer tipo de situação. Fazia o possível para isso, dobrava-se em dois ou em dez.

Gostava disso, sentia-se menos entediado com tamanha reversão de identidades. Num lugar pacato como aquele, com a mesma cara, fazer-se de diversos, filho obediente, de garanhão ou de estudioso, já era uma diversão. Cada vez mais mutável e mais diversificável ele a desenvolvia. Tanto que passou a se interessar por mágica, provavelmente por ter esse leque de cartas escondido na manga. Mudou até o próprio jeito de enfatizar a sua pessoa, antes atraída pelas qualidades, agora pelo talento de mágico e seus shows surpreendentes pela vizinhança.

Logo sua fama espalhou nas cidades vizinhas e se dopava com aquilo, a cura, para o seu próprio espanto, como um remédio para o tédio popular. Conduzido pelas facetas de onde adorava se enganar, ele mesmo foi tomando consciência do quão era vazio continuar no disfarce de sua própria vida. Pois percebido isso, era não mais esconder-se de si. Chegado ao ponto onde o efeito não o adulava mais, conseguiu ainda partir para mais uma saída pra nova rotina: a crise.

Logo, não deixava que a continuidade das coisas o pegasse de jeito inusitado a atolar-se em vãos de enjôos. Fez-se até de melancolias e plumas existenciais para sua própria felicidade. A paranóica vontade em se metamorfosear o levou a um desejo mágico de imortalidade o qual estudava minuciosamente sobre, caso que também o levou a ser um intelectual sobre medicina e biologia. Livros diversos levavam o eterno jovem a falar cada vez mais sobre a vida.

Acontecido o já esperado, quando já cansara do tema onde extremava-se tanto na teoria quanto na prática do viver, esgotou-se dos conhecimentos. Não se apegava a nenhum vício que o levasse a uma estabilidade. Encheu-se de querer conhecer todas as coisas, o ser e até a morte que já questionara dentro das suas medicinais palestras sempre na tentativa de diversificar. Procurou por vícios concretos para que houvesse algo mais em que pudesse se apoiar. Comprovou a existência deles, mesmo assim nenhuma das químicas consumidas tinha o mesmo efeito de dependência progressiva para ele, talvez porque desde o começo também já as levava mais como um fator provisoriamente distrativo.

Estava tão bem de vida financeiramente que aceitou facilmente a solidão natural de seu interesse por nada e pôde construir uma jornada tão satisfatória e feliz a ponto de novamente não ter mais como escapar da fantasia que aquilo tudo lhe parecia. Tanto ceticismo o levou até a querer amar, uma forma de anulação. Como nem os bichos da casa não o cobriam mais como antes, trocou de empregada. Pois com um tempo, a anterior tornara-se bonita demais e ele não via mais ousadia naquela beleza imposta pelos dias contínuos a vendo.

A nova não era feia, mas ele teimava consigo mesmo o contrário para que conseguisse se desculpar por detrás do diferencial que vira naquele rosto tão comum, vazio e mesmo. Deu-se um grande amor entre eles. Até porque nem sempre era grande, às vezes sutilezas de amigos, brigas fraternas ou intesidades carnais variavam nas trocas dos respectivos substantivos e adjetivos formando uma grande atmosfera do amor dos dois. Algo que não era amor o havia fisgado. Várias vezes repetia essa frase pra si mesmo e perdurara o relacionamento com tal esperança de mais novas descobertas.

Anos mais tarde os dois aposentaram num lugar mais deserto, mais reservado e sem novidades. Ele não era mais jovem. Desconfio que esta fora a única mudança que de fato teve durante a estória. Não queria mais caçar surpresas e experimentar gostos. Parou de parar com as coisas, como numa suspensão. Estavam no meio do mato agora e ainda se desejavam. Mas por uma conseqüência do amor vivido, ele teve de trair a mulher numa determinada ocasião onde a traição lhe fora necessário para a preservação do seu casamento.

Daí reconheceu a magia da plena vivacidade do rejuvenescimento. Inspirou-lhe a lembrança de suas vontades originais e tornou-se definidamente triste por isso. Ainda era escravo de tudo aquilo que perseguira a sua vida inteira. Quis se matar, para romper tal barreira, mas concluiu que isso também seria uma forma de vontade e transformação, e, por isso, da ininterrupta covardia em não exterminar sua falha trágica, e apenas adiantá-la. Não queria satisfazer seu conformismo para que não tornasse a acabá-lo novamente. Sabia que podia aceitar a situação e continuar daquele jeito raso, nem bom nem ruim.

Na cama por muitos dias, quieto, a mulher compreensivamente cuidava dele. A falta de doença ou dores o consumia tanto a ponto de cansá-lo por isso. Somente a presença dela conseguia remediar por lembrar o marido culpado, a traição o acalmava um pouco. Mas de qualquer jeito ele havia de adoecer: ou de remorso, ou de fartura. Não demorou muito pra o dia acontecer.

Foi ali mesmo na cama onde me contou toda essa labuta a qual eu mal dava ouvidos, que me peguei como se tivesse interagindo com uma tábua. Nem terminado tal impressão, Abelardo continuava a atropelar meus pensamentos sem ouvir minhas expressões:

_ “E foi quando enfim meu corpo desejou primeiro do que os meus olhos. Tive de estar aqui parado durante meses a avaliar o novo estado. Aqui cerrei o movimento das flechas lançadas pelos olhos delimitados a não ultrapassar as paredes e a mobília do quarto. Aqui consigo mover para o mesmo lugar e passar por mesmos acontecimentos sem problema algum. Condicionado à cama, ela tornou minha aba e não reclamo. Provoco-me em cima da cama, sem poder levantar, é o desejado justamente por nunca ter conseguido querer isto.”

Diante das palavras prosseguidas por Breno, eu me correspondia não com a história, mas pelo mesmo estado descrito por ele quando ouvinte do velho, o de aturar toda a chatice de uma simples e vã experiência contada. Mesmo quando me desinteressei e quis parar de ouvi-lo, Breno não atendia meu clamor:

_ Como esse intervalo sedento já te envelhece, Breno!

Pareciam passadas infinitas horas de besteiras camufladas em besteiras e aquele moço de frente com o meu sono tornara-se um velho tal qual o da sua história, parado. Mais lento que o relógio contado agora com tão notável rapidez. Depois de não depender mais do esperado preenchimento para aquele vazio espaçoso de antes a ponto de eu nem reconhecer mais o meu próprio quarto. Explicava isso por estar além do que os segundos pudessem fazer naqueles instantes destinados ao patamar de onde meu amigo encontrava se estendendo na longa história. Diria que propositalmente, para despertar qualquer vestígio de uma suposta curiosidade ainda almejada por ele na ânsia de condicioná-la à minha irritação. Então continuava:

_ O doente então não abusava mais dos olhos, via só o que queria, repunha o olhar por palavras inexistentes ou ouvia mais do que sons concretos. Quanto a imaginação, agora também a traduzia ao próprio ouvido e passou, inclusive, a ouvir e falar com mais clareza, pois falava o que quisesse e ouvia quando quisesse.

Gostou de estar louco para os outros, parentes, esposa e amigos, como eu, que o visitavam. O mais falado por ele era o matagal inexplorável reconhecido na infância, mas já não dizia sobre suas heróicas aventuras vividas inventavelmente ali dentro, falava apenas sobre a sua distância, e delirava no prazer que há anos não sentia. O prazer de contemplar o próprio prazer e não mais ser dependente dele. Agora estava, mais velho, especificamente mais velho, agora estava brincando de contemplar e tudo o entusiasmava. Não tinha mais dez anos e qualquer coisa era única e última. Continuava a ter mais nada a não ser anos de idade.

Depois de terminada a história, ainda jogamos mais algumas fora e, findado o das conversas, continuamos ali a memorar um próximo jogo possível para passar o tempo.

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