domingo, 4 de setembro de 2011

A TRADIÇÃO EM FRANZ KAFKA A PARTIR DE WALTER BENJAMIN

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO
CAMPUS GUARULHOS

AVALIAÇÃO FINAL DE ESTÉTICA E FILOSOFIA DA ARTE I
PROFESSOR LUCIANO GATTI
ALUNA CRISTILENE CARNEIRO DA SILVA
FILOSOFIA, 7º TERMO, NOTURNO

A TRADIÇÃO EM FRANZ KAFKA A PARTIR DE WALTER BENJAMIN

SÃO PAULO
16/06/2011


WALTER BENJAMIN: O SANCHO PANÇA DE KAFKA

“Homem ou cavalo, pouco importa, desde que o dorso seja aliviado do seu fardo.”


A perplexidade com que é tratada a história, muitas vezes nos trouxe embaraços dos quais Walter Benjamin aponta em alguns de seus escritos com facilidade e sem a cerimônia assustadora com que a literatura é preconceituosamente tratada. Para isso, serve-se de Franz Kafka como exemplo esclarecedor das confusões burocráticas e enigmáticas dadas pelas autoridades densas e aparentemente opressoras, tais como o passado histórico ou mesmo o personagem Potemkin citado na anedota de seu texto sobre tal romancista. Por trás dessa leveza liberta e reveladora do poder transformador kafkiano, W. Benjamin já denota a eficiência que um estudo crítico permanente e remissivo sobre cada parte da história poderia despertar nas tradições adormecidas pelo decorrer de um historicismo homogêneo e totalitário. Nessa elevação da cultura retratada por Kafka, Benjamin reafirma a responsabilidade de um transporte instaurador de movimento numa obra humana, tal como confere isso análogamente à Sancho Pança, numa alusão comparada também à Kafka. Aqui, porém, o movimento se estende ao último também como um cavaleiro, agora apoiado pelo mesmo Benjamin quem o ressaltou.
Mas não é somente no âmbito da história humana que tal tradição kafkiana é enfatizada, como principalmente no cosmo. Os “gigantescos parasitas” constituídos pelos juízes, pai, porteiro e funcionários em seus romances fazem parte de um todo formalmente denso e pesado, monótono e contrário à uma existência reflexiva, ou seja, a algo que culpa e é culpado ao mesmo tempo, por exemplo. Ou mesmo algo contrário à ignorância reprimida e quase primária: um saber absoluto. Esse poder enigmático e permeado de mistérios, originado por tal todo complascente pode se associar com o tema que gira em torno dos textos escolhidos neste livro de Benjamin: a História que esconde uma tradição. Não é à toa que conforme bem observa Benjamin, encontra-se até uma certa atmosfera primitiva como efeito dessa ambiguidade entre a ignorância das leis humanas omitidas e ao mesmo tempo a existência autoritária das mesmas em Kafka. Assim também circulam fatos históricos descritos “em massa” sem um objetivo fixo e combatente que salte e transgrida o historicismo eternizado a ser vencedor, de maneira oculta e injustiçada, como é melhor explícito no texto “Sobre o conceito de História” .
O universo cósmico aparece em Kafka, porém, enquanto parte de sua obra, e não personagem principal. Benjamin corrige o papel mitológico nas obras kafkianas para “uma promessa de libertação”, e não uma sedução mercadológica. Muito pelo contrário, é por meio dos desfeixos míticos que se chega a um vazio poderoso de vitória e final redescoberto. Daí o argumento benjaminiano para afirmar o materialismo histórico implícito em kafka, para além da matéria bruta, mas inclusive espiritual. Espírito dialético este que podemos verificar por meio do silêncio e da música, da arte cantada pelas sereias e do cotidiano, da esperança e do absurdo, da salvação nos mensageiros e da representação teatral ao ar livre feita por todos etc.
Entre tais oposições se encontra uma libertação que está contida justamente na autonomia de metamorfose daquilo que foi reprimido. É porque há uma transparência nesse “desprovir de carácter” que o personagem se livra dos enigmas complexos e se complementa inocentemente de simplicidade nos sentimentos, reações singelas porém fortes. Eis a tradição kafkiana a partir de Benjamin: quando há uma certa teatralidade pura nas atitudes humanas: “O teatro é o lugar dessas experiências”. A gestualidade generalizada no universo do autor é enfatizada de modo que emerge de um detalhe personificado a um todo kafkiano, exaltando por completo a sua obra, por essência, tradicional e autêntica. De acordo com o que diz Benjamin a respeito do papel de um historiador pensante, que repercute e posiciona sua própria história dentro de um contexto. O papel da literatura de Kafka aqui está diretamente relacionado com tal capacidade de elucidar uma tradição e presentificá-la no tempo histórico, inclusive para além do tempo somente humano, um tempo reflexivo.
É uma literatura lúcida que organiza o destino dessa arte, refere-se à passagens místicas para reconstituí-las ao seu próprio modo. Dessa confusão dada pela parábola como primordial, por exemplo: ela é enquanto um instrumento de sua obra, W. Benjamin irá defendê-lo das correntes mais espiritualistas ou mesmo religiosas. Por dialogar constantemente com a plenitude absoluta, seja ela Deus, mito, História, razão, memória, Castelo etc., afim de “oscilar de uma preocupação para outra, saborear todos os medos e ter a inconstância do desespero” , Kafka foi mal interpretado e tal injustiça incentivou Benjamin a resgatá-lo da sua biografia primeiramente publicada, conforme o próprio Kafka fez com o papel do romance dentro de uma determinada época evasiva, e restaurou-o. Por meio do próprio peso angustiante e esquecido num vazio homogêneo e imposto pelas perseguições humanas. O gritante no autor são essas pegadas instintivas do bicho deformado, do ser interior reprimido, num jogo gestualmente articulado entre a história da razão humana e essa culpa entranhada pelo esquecimento que a progressão dos dias trazem:

“É claro que a idéia de estar carregado tem relação com a de esquecer – no sono. Uma canção popular – O homemzinho corcunda – concretiza essa relação. O homenzinho é o habitante da vida deformada; desaparecerá quando chegar o Messias, de quem um grande rabino disse que ele não quer mudar o mundo pela força, mas apenas retificá-lo um pouco.”

Acima está muito bem esclarecido na passagem do texto sobre Kafka de W. Benjamin, a natureza de sua arte, espiritual somente na fragilidade dos remorços sob a teatralidade nas relações das personagens elevadas enquanto criaturas. O peso dessa resultante seria a sua marca libertadora, a viagem pela tradição que se move. Existe uma espécie de defesa da inocência afim de buscar constantemente o presente da vida na história por meio do próprio tempo materializado. Quase enquanto uma reminiscência, mas não um castigo sacramental e justo, apenas uma resignação pela continuidade ordenada do tempo, uma liberdade de reflexão perante as leis. Será a tradição que moverá tais leis, mas por meio da narrativa, refletindo as próprias leis tais como Dom Quixote é refletido para onde quer que o leve Sancho Pança.


BIBLIOGRAFIA

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v.1)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Entre, saia, naufrague, voe, comente, minta, mentecapte, poetize, sarause, recadoe, anunssintetize. Enfim, qualqueira!