domingo, 4 de setembro de 2011

O RISO LIVRE DO CÔMICO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO
CAMPUS GUARULHOS

DISSERTAÇÃO FINAL DE ESTÉTICA E FILOSOFIA DA ARTE III
PROFESSORA IZILDA JOHANSON
ALUNA CRISTILENE CARNEIRO DA SILVA
FILOSOFIA, 7º TERMO, NOTURNO

O RISO LIVRE DO CÔMICO
(SOBRE “O RISO”, DE HENRI BERGSON)

SÃO PAULO
22/06/2011

O CÔMICO LIVRE DO RISO

“É assim que as vagas se batem sem trégua na superfície do mar, enquanto as camadas inferiores conservam uma paz profunda.”


Bergson trata a comédia enquanto um instrumento de ampliação e simplificação da vida dentro do tema situacionista e cômico da linguagem. Ligada à infantilidade e à rememoração dos prazeres brincantes e longínquos no tempo, mas não necessariamente distantes quando num espaço representado e permissível ao resgate da infância, como o faz o espetáculo risonho. O parêntese que o ritual do teatro abre é esta cortina nostálgica do passado eticamente abandonado e não mais permitido no cotidiano, com as vias morais suspensas pelo palco, a comédia se permite aflorar todas as fragilidades de nossa inocência ao automatismo presente, o qual tentamos tapar com o decorrer do tempo de civilização proposto pela sociedade sobre o desenvolvimento de um cidadão.

“No ritmo uniforme da mola que se contrai e distende, o comissário cai e levanta, enquanto o riso do auditório vai sempre aumentando.”

Na surpresa do objeto que salta da caixa presa está o alívio solto do riso. Porém um alívio mantido moralmente por meio do que é repreendido numa determinada cultura. É exatamente porque não haverá outra pena a não ser o riso, que ele mesmo ocorre. O engraçado está na maneira que se pode amenizar uma suposta “dor” no sutil, uma ruptura no constante, uma tensão na surpresa que, de fato, não chega a ser um crime ou algo pejorativo à sociedade para ser banido, mas é, automaticamente, uma correção. Mas o que não está de acordo com o seu próprio ritmo já automatizado e se rompe, não com a força de um grito ao susto, e sim com um riso à mudança. É a resistência interferindo, indiretamente, sobre a liberdade. Ou nas palavras bergsonianas: a tensão na elasticidade.
Porém o percurso detalhado pelo filósofo para tratar as considerações sobre o riso não é tão simples e permeia uma série de casos, situações e possibilidades em que Bergson se debruça e depara seus estudos com a ética da humanidade, de maneira articulada e prática de seu próprio método metafísico, se assim ainda podemos dizer, ainda que referente a uma utilidade social. A fim de definir o papel da arte no mundo, dá uma causa diferenciada ao cômico bufão e à graça do espírito dramático, por exemplo. Enquanto a primeira é mantida por meio de circunstâncias que condicionam uma liberdade: seja a combinação dada por aplicações em formato de bonecos de mola presos e repentinamente livrados, de fantoches enganados por movimentos aparentemente próprios mas conduzidos por fios, das bolas de neves criadas instantaneamente da involuntariedade crescente numa causa fixa e irreversível de uma mudança automatizada e condenada a ir somente adiante, do lapso lingüístico dentro uma determinada norma-culta etc. A segunda é o movimento liberto e transformador do potencial de uma tensão fluir sobre qualquer que seja o carácter humano se o mesmo movimento não descarta a vida e o espírito.
Dentro de tal perspectiva, alguns itens seriam importantes enfatizar aqui. A repetição seria um deles: ligada à esta mesma tensão, a repetição dentro do cômico não se relaciona com a idéia de evolução somente, pelo contrário, ela é dada sob uma contingência de acontecimentos sempre inesperados, dando uma impressão somente material. Matéria esta, a qual seria o objeto moral do riso: ela fantasia a imagem detida de algo, paralisando o seu movimento, fixa assim uma idéia, cada vez mais fixa e mecânica, sendo a própria fórmula risível. Já a inversão nos conduz a algo que não é contíguo ou sobreposto, mas sim algo que oscila entre uma e outra coisa, entre um gesto e de repente outro e em seguido aquele primeiro, a substituição aqui é dada de maneira parcial por meio apenas de uma ordenação no espaço, mas que já era vazio de continuidade, seria uma demonstração mascarada enquanto complemento. E a interferência, em seguida, caminha para o mesmo esforço inútil e sem vida, a qual desvia a atenção sobre uma série que se segue por meio de um qüiproquó, por exemplo, e marca o seu acontecimento ritmado, porém sem uma constância de fato, são apenas surgimentos instantâneos no espaço, com coincidências interligadas pelas circunstâncias dadas. Acompanham, assim, a comicidade de situação, bem como as particularidades de linguagem também o fazem, podendo serem facilmente recortadas de um momento na vida de um carácter, sem demais diferenças influenciáveis no tempo do mesmo, por se tratarem apenas de algo extenso e exterior. Porém, tal carácter humano não poderia ser recortado desse momento situacionista:

“Daí o caráter equívoco da comicidade. Não pertence toda à arte, nem toda à vida. Por um lado, os personagens da vida real não nos causariam riso se fôssemos capazes de assistir aos seus desempenhos como ao espetáculo que olhamos do alto do camarote; eles só nos são cômicos porque representam a comédia. Mas por outro lado, mesmo no teatro, não é puro o prazer de rir, isto é, não é um prazer exclusivamente estético e absolutamente desprendido. Mistura-se a ele uma segunda intenção que a sociedade tem em relação a nós quando nós mesmos não a temos. Insinua-se a intenção inconfessada de humilhar, e com ela, certamente, de corrigir, pelo menos exteriormente. Esta a razão pela qual a comédia se situa muito mais perto da vida real que o drama.”

Pois é o papel do carácter humano na arte que Bergson quer estudar quando descarta, primeiramente os embaraços mecânicos da vida sobre a natureza artística. Portanto, o cômico é assim classificado por ele como mais próximo da vida do que da arte. Porém uma vida que contrasta a própria vida, e também a arte. É a resistência misantrópica que maleia e amacia o espírito. O trote. Mais do que o imoral corrigido, o insociável. Tais como os leves defeitos de carácter, por exemplo, a honestidade de Alceste, personagem cômico citado no livro. O insociável está porém, em algo particular, parcial a um todo uníssono. É algo que se destaca na personagem, não a complexidade da mesma. É o oscilante e simples em si mesmo, não mais fluente e de acordo com o espírito maleável, por isso não nos comove. Assim como algo que nos escapa parcialmente, daí a referência ao gesto, feita por Bergson, pelo fato de também se ligar ao desvio da atenção. Já o drama abarca o hesitar entre uma coisa e outra ao mesmo tempo, e não destoantes entre apenas uma coisa ou outra.
Enfim, a arte para Bergson possui uma causa, porém não uma intencionalidade útil. E é exatamente isso que a difere da vida, bem como o riso também, quando na arte graciosa, retira as individualidades cotidianas do indivíduo a fim de reafirmá-las artisticamente à consciência distraída. É da natureza humana e da inteligência pura que riamos e instauremos marcas e fixidez em nossa memória, por exemplo. A arte seria uma relação entre os preconceitos criados em sociedade e escondidos num véu de esquecimento e a permissão de reluzir particularidades atropeladas pela prática cotidiana, numa revelação da natureza sob uma ótica mais humana. Ou seja, a relação entre a ética enquanto moral prática e a liberdade ideal, porém também presente:

“Assim, quer se trate de pintura, escultura, poesia ou música, o único objetivo da arte é afastar os símbolos inúteis na prática, as generalidades convencional e socialmente admitidas, enfim, tudo o que nos esconde a realidade, para nos colocar frente a frente com a própria realidade. De um mal entendido sobre isso é que nasceu a celeuma entre o realismo e o idealismo na arte. Sem dúvida, a arte nada mais é que uma visão mais direta da realidade. Mas essa pureza de percepção implica uma ruptura com a convenção utilitária, um desprendimento inato e especificamente localizado do sentido ou da consciência, enfim, certa imaterialidade de vida, que vem a ser o que sempre se chamou de idealismo. Por conseguinte, pode-se afirmar, sem jogar de modo algum com o sentido das palavras, que o realismo está na obra quando o idealismo está na alma, e que só à força de idealidade se toma contato com a realidade.”


BIBLIOGRAFIA

BERGSON, H. O Riso. Trad. Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

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