domingo, 4 de setembro de 2011

A PAIXÃO VIRTUAL EM ROUSSEAU

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO
CAMPUS GUARULHOS

DISSERTAÇÃO FINAL DE FILOSOFIA MODERNA II
PROFESSORA JACIRA FREITAS
ALUNA CRISTILENE CARNEIRO DA SILVA
FILOSOFIA, 7º TERMO, NOTURNO

A PAIXÃO VIRTUAL EM ROUSSEAU
(SOBRE “ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS”, DE J. J. ROUSSEAU)

SÃO PAULO
27/06/2011

“Como não se soubesse pintar para os ouvidos, resolveu-se cantar para os olhos.”

Se houvesse uma afirmação a respeito de uma linguagem defendida por Rousseau, ela seria, no mínimo poética e, no máximo musical. Mas é o teatro das paixões que o filósofo realmente liberta por meio da natureza mais simples. Pois alguns elementos foram abarcados com o tempo percorrido pela humanidade, assim como a impressão e o gesto, o sentimento e a expressão. Após tais artifícios necessariamente criados, porém, condenou-se a espécie humana às relações sociais daí conseqüentes, e também inconseqüentes, como a linguagem instituída.
Somente a natureza primeira foi realmente livre da medida temporal enquanto sucessória e progressiva. Bem como se ignorava também a idéia de movimento, a não ser o absoluto e uníssono de acordo com o movente do universo. A determinação de graus na convivência dos fenômenos explodiu numa especulação esmiúça das partículas lingüísticas e hoje, até minusculamente virtuais: “Toda contribuição do progresso não é mais que o avesso de uma perda essencial” , como bem observa Starobinski, comentador sobre Rousseau.
Mas o que Rousseau repercute é que a linguagem humana não é meramente fisiológica. Nossos sentidos são moralmente apaixonados por vícios insistentes em se aperfeiçoar e “evoluir”. Vícios estes trazidos pela necessidade de sobrevivência, tais como a sensação do grito, a figuração, o significado, o pensamento e enfim, a razão. Noutras palavras, a origem social é denunciada na obrigação da afectividade e não no prazer do interesse.
Logo, o homem antes de ser racional viveu por instintos animais, tornou-se logicamente pensante depois que precisou se mostrar para outrem. A comunicação se constituiu desde a linguagem figurada até o sinal matemático. Desde os gestos expressivos, os gemidos gritantes de dor, os sentimentos trocados até o sinal significado em código definido. Por que então a separação contínua entre a paixão e a língua? É o que Rousseau responde em seu Ensaio sobre a origem das línguas.
Diferentemente do consensual, o “sentimento” em Rousseau também é uma impressão da linguagem, uma memória da paixão imediata impressa no acento da palavra, por exemplo. Mas o que o movimenta é a sua expressividade, dada pelo som no caso da pronúncia ou pela imagem, no caso da escrita. A escrita de sua época porém, não mais abrangeria o verso rítmico e figurado como foi o caso dos egípcios e dos gregos. A única imagem restante foi abreviada em letras com a ajuda da velocidade sonora que a voz humana consegue alcançar desde seu primeiro grito, ou seja, sua “horda”.
Assim, é na potência vocal que mora uma última esperança de ativar quaisquer vestígios de elementos passionais ainda existentes na língua. Pois a cor e a imagem ainda são estagnadas para Rousseau, possíveis de imanências com a natureza exatamente por se confundirem no espaço, tornando quase objetos explorados e lapidados quando consideradas na lingüística. Até o sentido da visão possui relações evidentes com a exatidão racional para o autor. Já a musicalidade e a entonação se movimentam junto com a velocidade social, ao passo que também manipulam o tempo de acordo com as paixões sentidas, bem como lutam contra as impressões já reconhecidas pelo sentimento em favor de novas sensações:

“A impressão sucessiva do discurso, que impressiona por meio de golpes redobrados, proporciona-vos emoção bem diversa da causada pela presença do próprio objeto, diante do qual, com um só golpe de vista, tudo já vistes. Suponde uma situação de dor perfeitamente conhecida – vendo a pessoa aflita, dificilmente vos comovereis até o pranto; dai-lhe, porém, tempo para dizer-vos tudo que sente e logo vos desmanchareis em lágrimas. Assim as cenas de tragédia conseguem efeito. Somente a pantomima, sem o discurso, deixar-vos-á lágrimas. As paixões possuem seus gestos, mas também suas inflexões, e essas inflexões que nos fazem tremer, essas inflexões a cuja voz não se pode fugir, penetram por seu intermédio até o fundo do coração, imprimindo-lhe, mesmo que não o queiramos, os movimentos que as despertam e fazendo-nos sentir o que ouvimos. Concluamos que os sinais visíveis tornam a imitação mais exata e que o interesse melhor se excita pelos sons.”

Essa é a força da música: contrariar a exploração do tempo feita pela velocidade das constituições humanas, muito contrária à realidade temporal da natureza. E assim reaproximar, por meio de um tempo menos artificial, o tempo do homem ao da natureza. A música faz esta reconstituição dialética e articula a história da sociedade materialmente sob o efeito cultivo do canto influente na línguas. Não é à toa que Rousseau se torna um precursor considerável da antropologia e sociologia.
O poder social da língua aparece então, para além da passagem que distinguiu o homem do animal, mas aquilo que inclusive distinguiu um homem do outro. Ironicamente, a festa e a música são lembradas enquanto aquilo que os reúne novamente. O movimento da linguagem cria o sentido do conceito, o conceito torna-se um objeto dançante da figuração para Rousseau. Pois a expressão é a atividade da idéia assim como a voz surge primeiro do que a palavra. O conhecimento é constituído também da imediatez presente, para somente então ser reconhecido como verdade, depois de sua impressão no decorrer do tempo. Mesmo assim a especulação da idéia, simultânea e aperfeiçoante sobre essa impressão, não abre mão do seu objeto de extrato, a paixão:

“Mas a paixão nos fascina os olhos e a primeira idéia que nos oferece não é a da verdade.”

No entanto, a lógica sonora e natural da realidade de segunda natureza está para além das “analogias gramaticais” entre sujeito e predicado. Por meio da expressividade do acento se enfatiza a paixão artesanal do som humano que movimenta os significados e dá sentido a um objeto através dos sentimentos. “Só assim o nome de uma coisa pode significar a natureza dessa coisa” , como Rousseau comenta acontecer em Crátilo, de Platão. Em vez dos verbos transcendentes, é a própria maneira de falar que revela a natureza dos seres e os vivifica. São as fontes de combinação tais como ritmo, acento, tom etc. o objeto mimético dessa linguagem natural a qual liberta o ouvido ao invés de domesticá-lo. Pois a mesma se dirigiria também ao coração, a razão não tão ocidentalizada, comportaria um entendimento pleno do homem em seu todo, não somente parcialmente direcionado a uma única parcela do seu corpo, se é que ai mesmo se encontra, a consciência.
Dessa segunda natureza partiu-se da definição para as especializações das palavras, códigos, pronúncias, pontos e sinais algébricos... De maneira que o físico consonantal entupiu e calou quase que praticamente toda a inflexão das vogais, onde ainda se esconde um rastro de eloqüência. Retirado o espaço da presença musical da voz, restou muito pouco a se fazer com a paixão a não ser instituí-la enquanto loucura como já o faziam na época de Rousseau, conforme comenta a respeito da leitura profética do Alcorão encarada enquanto fanatismo, pelo fato de haver maiores rumores de força e eloqüência no mesmo.
Porém é na imitação e no desejo que Rousseau defende a presença de uma moral, de causas e efeitos imageticamente sinalizados aos sentidos e relacionados com a sensação e os sentimentos por meio da comoção, daquilo que nos faz reconhecer um sentimento e cultivar interesses. Ambos conceitos ligados à harmonia e à forma, à melodia e ao desenho, respectivamente, tanto a pintura quanto a música são extratos e objetos morais que fundamentaram uma linguagem, assim como a natureza fundamentou uma civilização. Harmonia esta composta, ou seja, depende tanto do conteúdo quanto da forma. Assim, mesmo a musicalidade depende de um discurso; como a expressão de uma impressão e o interesse, de um gosto.
A música aparece agora como a resposta eloqüente dada por Rousseau. Dentro dela se encontram também a poesia e o teatro. Onde se encontram tanto a imagem quanto o som, num movimento onde é sempre o tempo que os mobiliza, de acordo com as paixões sentidas. A melodia diferente do desenho porém, é especialmente humana, depende apenas da vibração dos corpos e da força nas relações dos mesmos. É um acontecimento que afecta a experiência humana para além da necessidade. Já a pintura continua por ali, presente, porém dependente da luz de um cosmo, absoluta e inanimada, não excita sentimentos impressionantes, somente os contempla. O que não quis dizer que o filósofo tenha descartado a posição figurada da semântica numa língua, apenas deixou-a num patamar secundário. A fim de que o canto não se extinga e torne somente fala ou nem isso, assim como já aconteceu com a poesia recitada que hoje é lida feito prosa. Na poesia o predomínio da imagem sufocou os cânticos como ocorreu em Homero. O próximo passo depois da imagem, como afirma Rousseau, seria o atropelamento da arte pela filosofia, suprindo com a razão por cima de qualquer vestígio de paixão.
O esquecimento de uma das partes constituintes da relação humana do sujeito numa sociedade implica também na anulação do mesmo. Depois do homem ter sido destacado das outras espécies pela capacidade de se comunicar e saído de si mesmo enquanto presença segregada de paixão e somente racional, agora suas relações exteriores ultrapassam o interior de si mesmo, encontra-se como sujeito apenas no virtualismo alienado de seu nome descrito numa certidão de nascimento. Tamanha inexistência consegue se instaurar muito menos ainda enquanto um objeto da natureza, no máximo um objeto que a destrói. Mais triste ainda é a incapacidade resultante dessa auto-extinção ineficaz se prender dentro de célebres máquinas quadradas, os novos úteros criados à sociedade já cansada de parir cérebros, agora cospe chips computadorizados em nome da comunicação.



BIBLIOGRAFIA

ROUSSEAU, J.-J. Ensaio sobre a origem das línguas. Trad. Lourdes Santos Machado. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os pensadores)

STAROBINSKI, Jean. Rousseau e a origem das línguas. In. Jaen-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo; seguido de setes ensaios
sobre Rousseau. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Lestras, 1991.

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