segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

resenha de O MESTRE IGNORANTE, Jacques Rancière.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO
CAMPUS GUARULHOS

FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO
PROF. ALEXANDRE FILORDI

RESENHA DO LIVRO:
O MESTRE IGNORANTE
(JACQUES RANCIÈRE)

CRISTILENE CARNEIRO DA SILVA
FILOSOFIA – 8º TERMO – NOTURNO

GUARULHOS
03/11/2011

A EMANCIPAÇÃO DA INTELIGÊNCIA PARA ALÉM DA SABEDORIA

“Sozinhos, eles haviam buscado as palavras francesas correspondentes àquelas que conheciam, e as razões de suas desinências. Sozinhos eles haviam aprendido a combiná-Ias, para fazer, por sua vez, frases francesas: frases cuja ortografia e gramática tornavam-se cada vez mais exatas, à medida em que avançavam na leitura do livro; mas, sobretudo, frases de escritores, e não de iniciantes. Seriam, pois, supérfluas as explicações do mestre? Ou, se não o eram, para que e para quem teriam, então, utilidade?”

Pode-se resumir a idéia central do livro de Rancière a partir dos questionamentos que o mesmo virá fazer a respeito do papel e conseqüências advindas do progresso racional sobre a educação. Para isso, ilustra com uma alusão histórica e filosófica a situação preponderante do conhecimento formativo até então nunca questionado por sua prepotência. Trata-se de uma “aventura intelectual” de Joseph Jacotot em 1818 utilizada para exemplo ao longo do livro: um autor francês que foi muito admirado por estudantes holandeses os quais desejavam aulas com o mesmo, porém ambas as partes não dominavam a língua correspondente para tal relação. Por meio de uma edição bilíngüe da obra Telémaco, a troca foi então possível. A questão colocada no livro a partir deste exemplo de experiência é a seguinte: há necessidade ainda de explicações exteriores à própria experiência da leitura? Qual o papel do mestre ao expor um outro raciocínio para esclarecer seus alunos? Apenas a de um reprodutor já que ele cria sobre os comentários de uma obra? E, finalmente: a problemática do papel da instrução coletiva por meio da necessidade em explicar algo enquanto uma evidência não discutível.

Deste impasse entre o mestre e o objeto estudado, no caso o livro, surgem distinções entre o que realmente seria essencial para o aprendizado, daquilo que somente estaria na educação enquanto um acessório, nem sempre percebido ou detectado. Em outras palavras, o critério superficial da autonomia do professor enquanto sendo aquele que explica é derrubado por Rancière. Porém a desmistificação está mais na estrutura de superioridade do professor no formato de patrão formador de fábricas de progresso e capital do que na importância de uma figura mais velha e experiente presente em sala de aula. A falta de diálogo no conhecimento quando advindo apenas de um lado na sala de aula é que destrói a cumplicidade construída pela descoberta que tanto aluno quanto mestre possam vivenciar.
É a quantidade de multiplicações que uma mesma matéria pode gerar para a sua melhor compreensão que o autor do livro atenta, contra as confusões que o entendimento imediato pode percorrer ou se deixar imprimir sem uma maior orientação. O professor agora é um orientador do caminho a percorrer pelo raciocínio de quem aprende, aquele que está distante do primeiro contato com a obra por já tê-la conhecido, disponibilizando outras oportunidades de juízos sobre ela. Não mais aquele quem domina e possui uma matéria a ser distribuída, pois conforme argumenta no livro, isto um pai pode muito bem presentear um filho dando-lhe um livro. É como no exemplo dado nos primeiros capítulos: uma criança age, anteriormente e sozinha sobre as palavras que reproduz ao escutá-las. Porém a “verificação” do que aquilo significa bem como sua compreensão é desenvolvida por meio das suas relações exteriores e suas associações combinatórias posteriores, as quais comporão sua lógica vocabular e avaliativa.

“A revelação que acometeu Joseph Jacotot se relaciona ao seguinte: é preciso inverter a lógica do sistema explicador. A explicação não é necessária para socorrer uma incapacidade de compreender.”

A crise na postura da educação hoje pode ser referida para demonstrar o quanto há a subestimação da capacidade que o aluno possui em aprender, o conflito existente entre a consciência da pessoa com a faculdade de raciocínio e aquela quem incide sobre ela como se fossem quase que praticamente de espécies animalescas e diferentes traz um problema grande de cumplicidade entre as características humanas de relacionamento e comunicação, quando na verdade deveria se complementar e referenciar em vez de interromper bruscamente uma leitura ou interpretação iniciante. No entanto, esta instrução necessita ser constituída não por meio do “embrutecimento” da capacidade humana em conhecer ao acomodar o aprendiz numa ordem explicadora cada vez mais esnobemente clara e dada enquanto resposta superior e indiferente. É assim que hoje confunde-se explicação com informação, por meio do menosprezo que se tem às capacidades humanas de entendimento lógico.
Rancière abre o seu movimento de argumentação referente à esta insegurança no poder de razão do aluno sentido pela imposição bruta do professor em “explicar o explicado”, ao desenvolver a análise sobre a distância imaginativa do professor de ir além da simples tradução. Não é à toa que a história utilizada como mote e exemplo factual é a aula de francês que Jacotot propõe e se atreve nas descobertas despertadas pelas vontades de expressão, mais do que pelas traduções: os alunos deste, mesmo sem entender ou precisar ouvir as explicações do professor, aprendem o francês e vão muito bem ao escrever sobre a obra estudada. É a vontade em traduzir, adivinhar o que tem por trás que surge dos alunos para o professor e não a partir deste último. Assim quem apreende se apropria do apreendido por si mesmo, ativamente. Neste sentido a educação para o autor de “O mestre ignorante” não seria a formação de instituir executivamente uma lei, mas a descoberta de criar reciprocamente um conhecimento. Em outras palavras, não teríamos aqui um professor reprodutor de explicações já fechadas, mas um mestre autor de concepções e vontades expressas livremente, um “mestre emancipador”. Neste aspecto temos alguns paralelos fortes entre este livro e a obra “educação e emancipação”, de Theodor Adorno, onde este também eleva o papel da educação ao encontro da emancipação versus à reprodutibilidade barbária existente nas escolas ocidentais:

"É preciso buscar as raízes nos perseguidores e não nas vítimas, assassinadas sob os pretextos mais mesquinhos. Torna-se necessário o que a esse respeito uma vez denominei inflexão em direção ao sujeito. É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca destes mecanismos. Os culpados são unicamente os que, desprovidos de consciência, voltaram contra aqueles o seu ódio e sua fúria agressiva. É necessário contrapor-se a uma tal ausência de consciência, é preciso evitar que as pessoas golpeiem pra os lados sem refletir a respeito de si próprias."

O caráter libertador da situação em questão no livro porém, não exclui nem ignora a importância e diferença entre um método e outro. Para a absorção rápida de uma língua extrangeira tal método somente provocador e aberto foi suficiente. Mas alega Rancière que há sim uma interdependência entre a vontade imediata em aprender e inteligir na forma de teste e tentativa e o inteligir do gosto duradouro e histórico de um conteúdo intelectual. Ao primeiro o autor remete ao mestre “ignorante” e o último ao mestre “sábio”, afim de instigar ainda mais as nossas perspectivas críticas e atentas para averiguar astuciosamente o que limita ambos. Nessa espécie de socratismo é que o autor vai nos revelando a experiência em não saber para compreender juntamente, independente de um conteúdo dado, seja ele possuidor de seu domínio ou não:

“O ignorante aprenderá sozinho o que o mestre ignora, se o mestre acredita que ele o pode, e o obriga a atualizar sua capacidade: círculo da potência homólogo a esse círculo da impotência que ligava o aluno ao explicador do velho método (que denominaremos, a partir daqui, simplesmente de o Velho).Mas a relação de forças é bem particular. O círculo da impotência está sempre dado, ele é a própria marcha do mundo social, que se dissimula na evidente diferença entre a ignorância e a ciência. O círculo da potência, quanto a ele, só vigora em virtude de sua publicidade. Mas não pode aparecer senão como uma tautologia, ou um absurdo. Como poderá o mestre sábio aceitar que é capaz de ensinar tão bem aquilo que ignora quanto o que sabe? Ele só poderá tomar essa argumentação da potência intelectual como uma desvalorização de sua ciência. E o ignorante, por sua vez, não se acredita capaz de aprender por si mesmo – menos, ainda, de instruir um outro ignorante. Os excluídos do mundo da inteligência subscrevem, eles próprios, o veredicto de sua exclusão. Em suma, o círculo da emancipação deve ser começado.”

O que se propõe no ensaio, pois, é uma iniciativa de mudança. A partir do acaso em não saber, descobrir-se “qualquer coisa” e relacionar-se com o universal para ultrapassá-lo com o esquecimento do “velho”, este aqui referido como o ensino vigente a Rancière. E tal universal se refere ao próprio ensino enquanto independente de um conteúdo particular, pois “tudo está em tudo”, conforme é argumentado ao relatar o processo de apreensão e leitura do Telémaco estudado.
É também por meio da “procura” que se emancipa a si mesmo, assim é elucidado na comparação entre Sócrates e a ignorância, assim como na estrutura gramatical, moralista e física “velha” versus o encontro metódico com este acaso: “Em toda parte, trata-se de observar, de comparar, de combinar, de fazer e de assinalar como se fez. Em toda parte é possível essa reflexão, essa volta sobre si mesmo, que não é a pura contemplação de uma substância pensante, mas a atenção incondicionada a seus atos intelectuais, ao caminho que descrevem e' a possibilidade de avançar sempre, investindo a mesma inteligência na conquista de novos territórios.” Este acaso é o diálogo entre a vontade e a inteligência, entre a emancipação e a compreensão. Eis a cumplicidade do acordo entre as opiniões, aproximando agora uma crença na ciência mais enquanto teste do que enquanto observação causal e evolucionista. Isso também esclarece a justificativa dada por Rancière a respeito de nossas “performances intelectuais” estarem muito mais bruscamente imperiosas do que nossas vontades no âmbito cultural, o que denota ser um obstáculo para aplicação dessa sua maestria descrita. Igualmente assim também seria a noção de veracidade para o mesmo, sempre condizente com uma autonomia de si em direção à objetividade, e não o contrário: a língua, o pensamento ou as leis não interromperiam a compreensão plena das vontades:

“Todo o esforço, todo o trabalho do poeta é de suscitar essa aura em torno de cada palavra da expressão. É por isso que ele analisa, disseca, traduzas expressões dos outros, que ele apaga c corrige sem cessar as suas. Ele se esforça para tudo dizer, sabendo que não se pode dizer tudo,mas que é essa tensão incondicional do tradutor que abre a possibilidade de outra tensão, de outra vontade: a língua não permite dizer tudo, e "é preciso que eu recorra e meu próprio gênio, ao gênio de todos os homens, para adivinhar o que Racine quis dizer, o que ele diria na qualidade de homem, o que ele diz quando não fala, o que não pode dizer enquanto não é somente poeta."

Conclusão esta que se estende por grande parte do livro numa crítica emancipadora sobre a estrutura convencional pedagógica. Há uma constatação de impossibilidade prática da compreensão autônoma e destemida de violências repressivas no sistema progressista e envolvido com a efemeridade do desenvolvimento racional e industrial. Ao lado, porém, de uma expectativa de maiores desarrazoamentos a partir de um conhecimento próprio e construído igualmente pelo povo, pois o filósofo ainda enfatiza que muito menos ainda se pode contar com a própria história do conhecimento para se emancipar, a não ser por meio do que o autoritarismo da mesma já o fez ao instituir verdades cristalizadas e matar essas novas descobertas dando somente mais força para suscitá-las como fortaleceu, literalmente, o próprio Rancière...


BIBLIOGRAFIA:

RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante – cinco lições sobre a emancipação intelectual. Tradução de Lilian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

ADORNO, Theodor. Educação e Emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

Um comentário:

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