segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Sobre um trecho de Utopia, Thomas Morus

Num trecho de Utopia, de Thomas Morus:

A Utopia se consolida porque surge de um tempo na história. E por isso é imperfeita, como o são também as cidades vigentes do período. No entanto, não deixa de conter a maior estabilidade, mesmo que idealizada, de uma cidade. Avessa aos países guerreiros em busca de reputação e, com isso, destruição, ela constrói a sua justiça com educação e qualidade de vida. Diferentemente da República de Platão no aspecto de ser fortalecida, porque é consistente somente no plano dos ideais, a Utopia não desmorona pois, inclusive, pode ser estabelecida.

Pode-se marcar já no início do livro primeiro da Utopia, de Thomas Morus, a força com que Rafael Hitiodeu é apresentado como citador de Cícero e Sêneca, assim como referenciado pois “…navegou com Ulisses e Platão. Escutai sua história…”. O que enfatiza o personagem enquanto inserido no contexto histórico, assim como historicamente também existente na viagem com Américo Vespúcio. O relato de sua procedência, antes do início da narrativa sobre a Ilha, denota uma equiparação à realidade encontrada antes de Utopia. A situação em que expressam seus valores e desejos de bem aventurança numa cidade ideal enfatiza o patamar vivido na Inglaterra com Henrique VIII, sem ignorar as estruturas do momento. A denunciada “imperfeição”, entranhada por demais na natureza humana a ser erradicada, não se refere tão somente às mínimas porém verificáveis imperfeições de Utopia, como principalmente à Inglaterra e cidades afins, possuidoras de ambições por reputações, a ponto de ocasionarem violências etc., conforme os vícios humanos. Vícios que, entretanto, pela passagem referida, estão entranhados na natureza humana mas são passíveis de transformação, segundo o desejo e admiração de Morus aos utopianos: “…me agradaria ver adotado no restante do mundo.”

Mas se a “natureza humana” discutida neste trecho por Morus é embutida de tais imperfeições, assim como relata também sobre outras sociedades que não a do discurso de Rafael, das quais as guerras, as ambições, a violência e as distorções do passado são evidentes; a natureza humana dos utopianos é aquela razoável, conforme a virtude do cidadão portador de justiça, verdade e generosidade. A circunstância em que começam a falar do povo utopiano já nos traz as atitudes de admiração aos mesmos: Morus se refere à felicidade dos lucros no cargo de ministro junto ao príncipe o qual Rafael poderia se inserir, ao passo que Rafael o recusa se utilizando de argumentos relacionados aos negócios públicos enquanto virtuosos e felizes somente quando em função da sociedade, e não aos interesses privados. A distinção entre os dois universos, privado e público, é feita justamente por meio da Utopia como argumento de algo diferente daquela organização social onde estavam inseridos. “Sistema” utopiano o qual se assemelha a uma cidade ideal, porque não existe de fato (outopia – não lugar), como também por se aproximar de valores benéficos a todos da “nação” (éticos: eutopia - bom lugar), constituindo parcerias com a República de Platão em determinados aspectos, como na “boa aventurança” e na “unidade”.

Em Platão, a República é idealiza não somente porque não existe no plano terreno como também pela impossibilidade de um alcance definitivo ao Bem supremo pela alma humana, pelo fato da Ideia de Bem conter esse carácter infinitamente reflexivo e de concórdias dialéticas, é necessário à própria cidade ser Ideal e não existir, a fim de sempre vislumbrarem-na. Já em Morus, o plano imaginário da Ilha decorre da conseqüênte imperfeição da realidade, sem nenhum outro vínculo que a impedisse de se tornar real. Isso já explicita um pouco da possibilidade de sua realização. A forma de romance em que é escrito também auxilia nessa caracterização literal e ilusória, não tanto, porém, o seu conteúdo. Há inclusive, um subtexto de esperança implícito na obra ao expôr o desejo de adotar a perpetuidade de Utopia nas outras sociedades:

“…dou-me por satisfeito que pelo menos uma nação tenha sido capaz de criar um sistema que muito me agradaria ver adotado no restante do mundo. Pelo modo de vida que adotaram, os utopianos têm a oferecer não apenas a base mais sólida para uma comunidade feliz e civilizada, mas também, tanto quanto o espírito pode prever, a perpetuidade desse estado de bem-aventurança.”

Diferentemente, então, da tese platônica sobre a impossibilidade de sua República, a incapacidade de realidade da Utopia não está em sua obra enquanto especulativa somente ideal, mas principalmente na inclusão histórica em que se encontrava. Em plena crise do regime feudal , da conversão religiosa inglesa do catolicismo ao anglicanismo para fins individuais e pessoais de Henrique VIII etc.

Contra as forças militares da época, que guerrilhavam banalmente e a quaisquer motivos, a “base mais sólida” da população utopiana não se funda na base militar, primordialmente. Os principais fomentos de estabilidade social dos cidadãos de Utopia são o amor e a sabedoria. Sabedoria esta que, mais similar ao socratismo que ao sofismo, não era concebida por vaidade ou espontaneidades da ambição e/ou reputação, porém de carácter construtivo em função coletiva, social. A razão muitas vezes é utilizada como instrumento de cidadania, onde por meio dela se alcança a virtude . Esta última, por sua vez, fundamenta-se na própria vida conforme a natureza humana, ou seja, na conduta pela razão. Contrários às penas de morte, utilizam-se da instrução e do potencial de renovação social, a ponto de obterem tal “perpetuidade” e manutenção da ordem bem distribuída, sem preceitos que fomentem ao crime, tais como a miséria e a privação territorial dos feudos, criticadas na primeira parte do livro. Assim, “o espírito humano pode prever a perpetuidade desse estado de bem-aventurança”, ao manter sua organização bem distribuída econômica, educacional, jurídica e politicamente. Princípios como igualdade, generosidade e liberdade são cultivados para atender esta demanda. Na distribuição territorial, por meio da arquitetura padronizada das casas e sorteio frequente na habitação das mesmas, na econômica o trabalho é realizado por todos , inclusive nobres, no âmbito educacional há cursos disponíveis a quem queira cursar, no jurídico e político, são os mais letrados escolhidos para magistrar determinado número de famílias, são treinados soldados a fim de excepcionalmente defender a cidade, não por expansão de territórios. O luxo , a demasia, a ambição, a inveja e a própria guerra civil são considerados destrutivos ao coletivo e, por isso, também aos cidadãos. Eis a “unidade” garantida pelo “bem geral” , prioritariamente.

No último período do texto, chega-se à duas concepções chaves: uma enquanto a fortaleza íntegra e indestrutível da Utopia, outra como sendo o tempo de duração de Utopia, enquanto constituída de uma história, por mais ideal que seja. A imperfeição, citada no início do trecho como se referindo aos vícios da natureza humana da sociedade real da época, pode ser vista, aqui em Utopia, enquanto um reconhecimento de que há imprefeições até na organização criada pela Ilha, o que além de noticiar o sintoma esperançoso conforme já descrito aqui, também propicia a abertura da cidade aos novos contextos inseridos, ilustrando um nacionalismo flexível, e não totalitário como vêmos em algumas Distopias, por exemplo em “1984” ou em “Admirável Mundo Novo”. Assim como o comentador Cosimo Quarta defende em seus escritos sobre Morus, três possíveis sentidos de leitura da Utopia: o alegórico (ideal), o semântico (de “valências críticas” e éticas) e o dinâmico (de possibilidades de liberdade, mudança e dimensão do futuro) , há na obra uma vontade de superar os males sociais por meio de tal “consciência crítico-projetual” . Um argumento para isso é a apresentação antes da Utopia ser introduzida na obra, Rafael articula muito sobre a libertação da cidade atual, especulando como seria uma cidade ideal afim de transformá-la, caso não houvesse tal preocupação, a necessidade de referências históricas mal seria desenvolvida na obra, como acontece com a República, por exemplo. Arriscar-se-ia até rever em Utopia um otimismo frente a conquistas e mudanças ainda realizáveis . Outro pesquisador, Arrigo Colombo, escreveu que a Utopia compromete o homem a agir, não sendo algo que estagna . Ele classifica a Utopia enquanto histórica, e não filosófico-literária, porém discorre que a obra traz somente idéias de uma prática e não ela em si, pois isto não compete à um único autor, mas à sociedade como um todo, afirma também que ela, a Utopia, é um projeto e processo histórico . Logo, a sua força não está na violência guerreira, mas na compreensão reflexiva. As intenções no modo como o autor relata o passado e a história social não negam isso, a ponto de simular além da cidade utópica, a história desta mesma, também como indestrutível. Quer-se-ia, além da transformação social, a propria transformação histórica? História que, para ser reconhecida, abrangeria, também, um suposto futuro.


BIBLIOGRAFIA:

MORE, Thomas. A utopia. Trad. Luís de Andrade. São Paulo: Nova Cultural, 2002.

COLOMBO, Arrigo. Formas da utopia. As muitas formas e a tensão única em direção à sociedade de justiça. In Revista Morus Utopia e Renascimento. Dossiê: O impacto da descoberta do Novo Mundo na cultura européia. V3. Campinas: Unicamp: 2006.

QUARTA, Cosimo. Utopia: gênese de uma palavra-chave. In. Revista Morus, Utopia e Renascimento. Dossiê: O impacto da descoberta do Novo Mundo na cultura européia. V3. Campinas: Unicamp, 2006.

FIRPO, Luigi. Para uma definição de “utopia”, tradução de Carlos Eduardo O. Berriel, in. Morus Utopia e Renascimento. Dossiê: utopia como Gênero Literário. V.2. Campinas: Unicamp, 2005.



Notas:
Críticas a respeito do regime vigente na recusa de Rafael a trabalhar para o Príncipe: “Os príncipes, meu amigo, põem nisto pouca diferença; e entre estas duas palavras latinas ‘servire’ e ‘inservire’, vêem apenas uma sílaba a mais, ou a menos.”( MORE, Thomas. A utopia)


Segundo biografia de Morus, o Príncipe haveria preferido o anglicanismo ao catolicismo da época para se casar novamente. (MORE, Thomas. A utopia. p.23)

“Traduzo aqui com ‘sabedoria’ o que Morus chama ‘sapientia’ ou ‘prudentia’ e que, no fundo, se identifica com a ‘ratio’ e, portanto, com ‘natura’, visto que na Utopia (162/18-22) é dito claramente que a virtude consiste no viver ‘conforme a natureza’ e vive conforme a natureza somente quem,’desejando ou fugindo das coisas, obedece à razão’.” (QUARTA, Cosimo. Utopia: gênese de uma palavra-chave.p.38.)

O oposto se dá na sociedade critica no primeiro livro, quanto à razão humana: “ Eles quebram a cabeça até encontrar um argumento contraditório, e, se a memória lógica lhes minguam, entrincheiram-se neste lugar comum: Nossos pais assim pensaram e assim fizeram: ah! Queira Deus que igualemos a sabedoria de nossos pais! Depois se assentam, pavoneando-se, como se acabassem de pronunciar um oráculo. Dir-se-ia, ao ouvi-los, que a sociedade vai perecer se surgir um homem mais sábio que os seus antepassados.” (MORE, Thomas. A utopia.)

“Porque neste século de dinheiro, onde o dinheiro é o deus e a medida universal, grande é o número das artes frívolas e vãs que se exercem unicamente a serviço do luxo e do desregramento.” (MORE, Thomas. A utopia. Livro II)

“Desta maneira ninguém fica exposto a desembuchar levianamente as primeiras coisas que lhe passem pela cabeça, e a defender, em seguida, a sua opinião antes do que o bem geral…”

“A linguagem de Utopia, de fato, além do sentido literal, possui outros dois: um alegórico e outro dinâmico.” (QUARTA, Cosimo. Utopia: gênese de uma palavra-chave. p. 50)

“Em Morus, não somente a consciência crítico-projetual, mas também a tensão realizadora é de tal modo forte que nos apresenta o ‘ótimo estado’ como já realizado.” (QUARTA, Cosimo. Utopia: gênese de uma palavra-chave. p. 51)

A respeito de tal perseverança, no início do primeiro livro, Morus conta: “Para dizer a verdade, Rafael notou entre esses novos povos instituições tão ruins quanto as nossas, mas observou também um grande número de leis capazes de esclarecer, de regenerar as cidades, nações e reinos da velha Europa.” (MORE, Thomas. A utopia.)

“É, por conseguinte, o projeto de uma sociedade ordenadaem termos de justiça, não um projeto qualquer, mas eticamente qualificado, que envolve o homem com um vínculo ético, um porvir. Não um fato imaginário, um sonho, uma veleidade impotente, como muitos pensam errando, mas um vínculo, um porvir onde o homem é compelido a atuar. O homem está insuperavelmente inclinado ao comportamento justo, a construir uma sociedade de justiça.” (COLOMBO, Arrigo. Formas da utopia. As muitas formas e a tensão única em direção à sociedade de justiça, p.56.)

“Eis a intuição fundamental: de que a sociedade não pode ser transformada pelo projeto excogitado de um autor, mas somente por um movimento em vigor na própria sociedade, movimento portador de um projeto que se elabora no seu interno, que o movimento, e com ela asociedade, põem em vigor. Não um projeto mental, pensado, ‘descoberto’.” (COLOMBO, Arrigo. Formas da utopia. As muitas formas e a tensão única em direção à sociedade de justiça, p.61.)

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