segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

ASPECTOS DA DIALÉTICA NA REPÚBLICA DE PLATÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO– UNIFESP

CURSO DE FILOSOFIA
DISSERTAÇÃO PARA A UNIDADE CURRICULAR
DE HISTÓRIA DA FILOSOFIA ANTIGA
MINISTRADA PELO PROFESSOR MAURÍCIO MARSOLA

ASPECTOS DA DIALÉTICA NA REPÚBLICA DE PLATÃO

CRISTILENE CARNEIRO DA SILVA
3º TERMO DE FILOSOFIA – VESPERTINO
SÃO PAULO
26/O6/2009


INTRODUÇÃO:


Ascensão da dialética: a alegoria da caverna:

A ascensão da dialética é demonstrada de maneira mais enfática a partir do livro VII de República, o que não quer dizer que ela tenha se ocultado no decorrer dos livros anteriores. Pois é por meio do próprio método dialético de investigar a definição dos conceitos de justiça, cidade, educação, alma, governante, guardião, filósofo entre outros aspectos tratados em torno destes, que Platão chega a uma necessidade máxima de se utilizar uma idéia maior [ou Idea mathema] que permita a “demonstração” desse ideal dialético fundado na Idéia do bem. Ou que, pelo fato de não ser possível a comprovação empírica desta idéia (por ser apenas uma idealização), pelo menos contribua com a sua propedêutica. Em outras palavras, uma idéia ainda não realizada não poderia ser demonstrada cientificamente pela experiência, mas sim pela imaginação ou observação mental da imagem desta própria Idéia. É a metáfora que uma Alegoria da Caverna aplica diretamente à inteligência como próprio exemplo de Paidéia: enquanto um objeto utilizado tanto para alcançar o próprio conhecimento contínuo e ascendente do bem na subida, quanto para regressar ao plano das opiniões e discuti-lo na descida.

A formação do dialético no livro VII:

Assim, o caminho percorrido pelo filósofo é que o eleva até a essência da dialética, e por meio da qual descobre a essência das coisas e a informa. E com este fim, o dialético (aquele que possui maior disposição da alma propícia ao bem) mantém a causa pela qual é o mais adequado a ser o guardião da cidade ideal.

Essa disposição da alma se manifesta nos que têm mais facilidades com as ciências do cálculo [matemática aritmética, hoje álgebra] e com isso, são bem dotados de raciocínio lógico. Esta ciência sobre planos imutáveis que busca a essência das coisas, a realidade verdadeira, a benção do olhar dada pela luz de fora do plano das opiniões e que atinge a alma no momento que ofusca seu cognato, no auge da subida e já distante da caverna. Parte-se para outras [ciências] que atingem o movimento dos sólidos, como a astronomia, por exemplo. Já com a essência das coisas e o bem como causas de sua iluminação, mesmo nunca dissociando-os [a essência e o Bem] também de um fim sempre a ser alcançado, e podendo dialogar de maneira justa e apoiada no bem [ou seja, a prática da ciência dialética] quando retorna à realidade existente, o dialético se dispõe ao plano das opiniões a fim de retornar à caverna e transformar ou formar o olhar dos cidadãos presos no escuro.

ASPECTOS DA DIALÉTICA NA REPÚBLICA DE PLATÃO

“Então, disse eu, só o método dialético, eliminando as hipóteses, caminha por aí, na direção do próprio princípio, a fim de dar firmeza aos resultados e realmente, pouco a pouco, vai arrastando e levando para o alto o olho da alma que está enterrado num pântano bárbaro...”

Na tradução aqui estudada, República apresenta-se de imediato no início de seu primeiro livro com a primeira palavra deste sendo o verbo “descer” conjugado no pretérito perfeito do indicativo, com a primeira pessoa, no singular. Além de se referir a Gláucon, seu irmão, nesta mesma frase. Em nível de signo conforme já o é a Alegoria da Caverna que também nos será discorrida, esta descida de Platão à República pode possuir correspondências relevantes para o que ele teria pensado sobre o papel do filósofo ideal enquanto dotado de dialética e encurvado humildemente sobre a cidade, tendo também ai uma metáfora para o motivo de sua elevação.

Discípulo não somente de Sócrates mas inclusive de Parmênides e fiel a este último em muitos aspectos, Platão se diferencia tanto dos sofistas quanto das imitações artísticas por estarem fora da realidade verdadeira e sim no âmbito do devir [no caso da flexibilidade dos argumentos sofísticos] e da cópia [no caso da imitação artística e não matemática ]. Porém, quando o autor de República distingue aparência da essência e se utiliza do princípio de identificação e ontologia próximos à Alethéia [via verdadeira e não doxal]de Parmênides, mesmo assim não descarta o mundo sensível de todo, usufruindo-se dele para descobrir a ordem lógica implícita na natureza das coisas:

“Libertar-se dos grilhões, disse eu, voltar-se das sombras para as imagens e para a luz, ascender do subterrâneo ao sol e, sendo ainda impossível olhar na direção dos animais, das plantas e da luz do sol, olhar para as imagens divinas na água e para as sombras dos seres, mas não para as sombras das figuras projetadas por essa outra luz que, comparada à do sol, é uma imagem dele. Todo esse empenho com os estudos de que falamos tem a capacidade de elevar a melhor parte da alma até a contemplação do que há de excelente nos seres, do mesmo modo que, naquele momento, elevou o mais preciso órgão do corpo na direção da contemplação do que há de mais luminoso no âmbito corpóreo e visível.”

Portanto a visão voltada para as imagens advindas da luz da qual se refere o filósofo no acesso à dialética, não se confunde com a imagem enquanto referência e objeto da opinião, seja da crença ou da imaginação agrupadas no mundo sensível e expostas pelo símile da linha de percepção no livro VI. Não se confunde devido a tal segregação dos planos [sensível e inteligível] e ao mesmo tempo ser o que os interliga e relaciona, daí a menção dela [a imagem] enquanto objeto também da dialética, porém enquanto “objeto de compreensão e da visão da inteligência” , e agora aproximado da contemplação.

Neste contexto de imagem e contemplação, após o esforço contínuo de discernir a alma e o corpo, o inteligível e o sensível, ou a essência e a aparência na trajetória da República, adentramos na Alegoria da Caverna e a Idéia do Bem é assim contemplada no sentido desse Mito descrito por Platão iluminar a visão para o Bem, já que o mesmo [o Bem] é eternamente um fim e uma meta a qual se pode apontar por exemplos como a Alegoria da Caverna, mas não se definir .

O progresso feito pelo entendimento da complexidade entranhada nessa história é parecido com o que se percorre no caminho do conhecimento das essências: parte-se de um mundo de trevas, onde há opiniões bárbaras sobre a verdadeira essência das coisas exatamente porque não as enxerga como são. E não se utiliza de ciência para alcançá-las por serem prisioneiros do senso comum, não se levanta a cabeça para uma maior investigação das coisas, vai-se pela sombra daquilo que, como pela correnteza de um rio, aparente ser algo, mas que ainda não passa de marionetes.

Mas ainda que haja a grande abertura para a luz do Sol fora da caverna, os prisioneiros não a enxergam por estarem acorrentados e ainda de costas não só para a saída da caverna como também para obstáculos existentes antes do seu topo: um muro, depois um caminho onde passam tais objetos artesanais, pessoas carregando-os e vozes imitando vida nestes bonecos ou conversando e fazendo barulho entre si. Todo este espetáculo é refletido em sombras na parede que os prisioneiros têm acesso, porém sombras também deformadas pelo movimento do fogo que as projeta, portanto não iluminados com a luz natural do Sol, e sim da que é forçada pela mão do homem [o fogo].

Nesta primeira passagem podemos enxergar claramente o mundo sensível das imagens, das imaginações destas, dos objetos reais que propiciam a crença daqueles que o carregam e os produziram etc.

Este âmbito da opinião é interrompido quando Platão dá a hipótese de suposto esclarecimento provindo de alguém que obrigasse e “arrastasse dali à força pela ladeira áspera e abrupta e não o largasse antes de conseguir arrastá-lo [o prisioneiro] para fora e expor à luz do sol” . Esclarecimento tal, que estagnaria a projeção do objeto enquanto considerada como a sua essência, ou mesmo o relativismo proporcional ao conhecimento enquanto um ponto de vista quantitativo e dependente somente do hábito. E sim traria uma ordem, a qual também depende de se habituar com esforço para melhor enxergar [referência à ginástica e ao exército que preparam o guardião], porém um hábito fundado em algo que o levou a fazê-lo, forçou-o a tal preparação por tê-lo libertado da prisão e o feito enxergar o Sol além da caverna. Assim como o Bem que a alma bem disposta carrega já levaria o ser a questionar para distinguir melhor a essência das coisas. O Sol, por não possuir sombras [quem as faz são os objetos no espaço], propicia uma metáfora de ápice do novo conhecimento em contraste ao que se acreditava baseado em trevas.

Os obstáculos da caverna, os bonecos feitos, o fogo criado, as suposições de produtos humanos fundados nas hipóteses em que acreditam, possuem riscos de enganos assim como também as ciências, mesmo a matemática, possuem. Quando não dispostas pela virtude da alma a qual capacita a “visão de conjunto” e habilita o ser para uma dialética com princípio de concórdias e convivência comum a inteligência de todos, e não de discórdias erísticas e injustas por abranger somente opiniões sensíveis a mudanças e não possuírem deduções lógicas e certas, não convindo a todos de uma mesma cidade.

Daí a necessidade do guardião percorrer o caminho das ciências que o Bem lhe mostra . Para que atinja tal preceito dialético em função deste mesmo Bem que o faz livrar-se das crenças e elevar-se até a essência, somente inteligível, das coisas. Assim, o filósofo se atém a esta Idea [do Bem] como a causa que o fez subir a ladeira áspera estudando a matemática, a geometria, a estereometria, a astronomia e a harmonia dos sons para saber discuti-las quando necessário, curvar-se às perguntas e respostas e aceitar mudanças pois é o logos que se leva em conta ao conceber uma hipótese , não mais “o prazer da brincadeira de refutar” para se promover:

“No mundo cognoscível, vem por último a idéia do bem que se deixa ver com dificuldade, mas, se é vista, impõe-se a conclusão de que para todos é a causa de tudo quanto é reto e belo e que, no mundo visível, é ela quem gera a luz e o senhor da luz e, no mundo inteligível, é ela mesma que, como senhora, propicia verdade e inteligência, devendo tê-la diante dos olhos quem quiser agir com sabedoria na vida privada e pública.”

Também na descida, a contemplação das definições dos objetos, ou a teria das formas das essências, é forçada a permanecer presente, enquanto eternamente plausível de discussão de acordo com as opiniões conjuntas que formam as leis de uma cidade. O cidadão que foi solto não estava somente condenado a sumir como também a descer. O reconhecimento de hipóteses inválidas aparece como o ato de concórdia e bondade, refutando uma resposta e buscando outras por meio da eironéia [ironia] a fim de parir outras idéias [maiêutica] também pode se chegar a uma aporia [uma necessidade de maior investigação da definição]. E esses movimentos no diálogo também fazer parte da dialética, portanto constituindo também esta última, o que seria a descida. Em “A religião de Platão”, Victor Goldschmidt apresenta um pensamento parecido a esta referida descida enquanto trajeto da dialética que ao mesmo tempo já a diferencia das outras cinco ciências:

“Ora, se a dialética não se confunde com as outras ciências, é porque estas não consideram senão partes do Ser, e elas são ‘obscuras’, porque, ignorando o Ser, nem mesmo poderão conhecer claramente suas partes. Como elas, a dialética parte, primeiramente, em busca de uma Forma particular, mas ela não pode jamais terminar o estudo desta se não atinge, antes, a Forma do Bem, a fim de compreender como se liga ao Ser universal esta Forma de ser da qual ela empreendeu a definição. Pois tudo procede do Bem, e nada pode ser conhecido, se não for pela dialética que, elevando-se até o ‘princípio de tudo’, depois descendo de novo às Formas particulares, refaz, na ordem do conhecimento, o movimento intemporal da processão.


... A dialética, que é essencialmente diálogo, eleva-se através das Formas até ao Bem, depois, a partir dele, desce novamente.”

Nesta parte do estudo sobre o conhecimento das Formas em Platão, o autor deste comentário citado acima investiga o papel da religião na dialética que a diferencia das outras ciências, enquanto portadora de algo para além do abstrato que Platão qualifica a matemática e seu objeto [a unidade], ou dos sólidos [geometria] e seus movimentos [as outras]. Algo quase espiritual e num âmbito para além das essências (assim como a Idéia do Bem está para além das outras Idéias, a dialética está para além das outras ciências). Mesmo que a essência das outras ciências, principalmente a matemática e a astronomia, jamais se encontrem num âmbito além do da alma e da inteligência. Aliás, por isso é que o filósofo define a unidade enquanto abstrata, pois nenhuma essência pode ser definida fora da alma [em sua parte racional e mansa, própria do filósofo ].

Deste modo, é assim que o dialético possui seu lugar divino dentro da cidade e de si mesmo [na alma], para além das essências das outras ciências, apesar de também ser uma ciência porém a máxima entre elas, assim como a Idéia do Bem. Podemos concluir, logo, que tanto a cidade, como o seu guardião e sua Idéia de Bem são ideais por se encontrarem no logos e não serem realizáveis. Pois ao passo que existissem, tornar-se-iam um devir por adentrar na opinião empírica e extinguiriam o próprio paradigma, retornariam a uma vida nas cavernas.

Referências Bibliográficas:

PLATÃO. República. Trad. Ana Lia A. A. Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

PLATÃO. A República: Livro VII. Comentário: Bernard Piettre. Trad. Elsa Moreira Marcelina. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, p. 22-45, 1985.

LEBRUN, Gerard. Sombra e luz em Platão. In: NOVAES, Adauto (Org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, p. 21-30, 1988.

GOLDSCHMIDT, Victor. O conhecimento das Formas. In: A religião de Platão. São Paulo: Difel, 2ª ed., p. 45-52, 1970.

GOLDSCHMIDT, Victor. _ As etapas do movimento dialético.

_ Nascimento do diálogo. In: Os Diálogos de Platão. Trad. Dion Davi Macedo. Edições Loyola, p. 1- 30, 1984.



notas:

Assim reconhecido por Platão ao colocar a imagem como sendo um objeto da dialética quando este [o autor de República] expõe pela segunda vez o símile da linha de conhecimento. PLATÃO. A República. Livro VII, parte XIII, 534 a.


Platão, República, livro VII parte XIV, 533d.

A respeito da imitação matemática, ela seria uma das duas causas de bem que toda imagem depende e possui segundo o comentário de Victor Goldschmidt: o modelo de imitação ainda possível ao artista, o qual também é uma ciência ainda não obtida a não ser quando descrita em Timeu, e o modo de imitação o qual é exato [quando é matemático] ou reprodutor de beleza [quando artístico e agradável]. GOLDSCHMIDT, Victor. Nascimento do diálogo. In: Os Diálogos de Platão, p.15.

Platão, República, livro VII parte XIII, 532 c.

Assim denomina também Bernard Piettre ao expor o símile da linha desenhado num esquema de analogia para o mundo sensível o qual está para os objetos da opinião [crença e imaginação] assim como o inteligível para os objetos da ciência [objetos da inteligência pensante _ matemáticos e os objetos de compreensão ou da visão da inteligência _ idéias]. PLATÃO. A República: Livro VII. Comentário: Bernard Piettre, p.35.

Mais uma alusão à Parmênides quando este associa o ser e o pensar como unos e idênticos, daí a explicação para a influência de Platão por ele, citada anteriormente. O ser é, independente de suas transformações pois só se pensa aquilo que é. Daí a incapacidade de definição do Bem para Platão, pois ele é por ser pensável e pura e totalmente inteligível, não participando do plano empírico para poder ser apontado, a não ser apontando exemplos nos quais ele estaria inserido.

Platão. República, livro VII, parte II, 516 a.

Ibdem, parte VI, 537 c.

Sobre o Bem como causa do conhecimento e também finalidade. Assim como a sua analogia feita ao Sol enquanto aquilo que traz luz para o homem, diferenciando Platão do humanismo de Descartes onde tal esclarecimento advém da própria distinção e clareza das idéias do homem, não de um Bem que o força a sair da Caverna, ver LEBRUN, Gerard. Sombra e luz em Platão. In: NOVAES, Adauto (Org.). O olhar, p.29.

Porém esta discriminação das crenças não contidas na dialética aparece com maior ênfase na República do que em outros diálogos de Platão, assim como Victor Goldschmidt argumenta sobre os primeiros quatro modos de conhecimento descrito em Cartas como associados à opinião: “Interrogar e responder é próprio tanto da erística como da dialética” em seu texto sobre as Etapas do movimento dialético. In: Os Diálogos de Platão. p.6

Platão. República. Livro VII, parte XVII, 539 d.

Platão. República. Livro VII, parte III, 517 c.

Goldschmidt, V. O conhecimento das formas. In: A religião de Platão, p. 46.

Platão. República. Livro IX.

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