sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Necessidade acidental

                  Sol nas ruínas de uma obra abandonada pela construtora. O amontoado de pedras ao redor formava uma ciranda estridente de silêncio gritante. Há muito tempo já era domingo, o barro duro mantinha correspondências com o laranja da tarde.
                  Não ventava. Do alto daquele morro, muitos terrenos baldios empoeirados por um mato verde, mas curto, por isso sem vingar e seco. Às vezes me dava a impressão de que se o tocasse com a mão num movimento de esparramá-lo como quem abana um adeus para o chão, ele se espalharia todo, ralo. Não parecia aparado, porque devia haver mais de datas que ninguém sequer escorregava por aquele caminho, nem chuva. Mas o lugar estava firme, mesmo que parado. Aqui se pisa com força pra manter o cuidado de terra enxovalhada. Desbotada, sem minhas botas agora, sinto melhor a temperatura suada da grama. Mesmo que uma parte das costas não perceba sua dureza devido à lordose, deito. Com o corpo esticado e rente ao plano baixo, sente-se menos o peso desse lugar carregado de levezas destoantes. Aprofundo-me natureza adentro.
               O silêncio de imagens intactas e contingentes fecha meus olhos, a ausência de diferença nas vibrações sonoras preenche gritantemente meus ouvidos. O paradoxo do ar enche meus pulmões, confundindo minha respiração na aparência de estar parada ou sendo forçada à vida, e meu tato está enterrado. Nenhum sentido.
                Eis que um tremor vem de cima. Como se uma grande pegada chegasse. Daqui do fundo isto foi causa de um terremoto sobre mim. Novamente a pisada. Pela cordialidade ao encurvar sua força para não rachar a superfície plana, como se me cumprimentasse simpaticamente, nessa formalidade arredondada feito arco, talvez ferradura: um cavalo? Um cavalo me flechou... Digo, me sacudiu, me acordou. Opa, não: balançou. Ou melhor, animou; ressuscitou; tremeu, não sei. Mas é preciso uma definição...
                O barulho parou. Mal percebi a calmaria do estrondo enquanto discutíamos sobre o seu conceito. Ainda ali? Não há como saber, muita terra entre esse cavalo inalcançável e eu. Mal sei quem você é, a sua cor, pêlos, músculos, tórax, dentes perfeitos, olhar de horizonte selvagem e puxados, feito um índio? E se não fores um cavalo? Se me enganaste com este cuidado manso ao chegar assim, gentil e com tamanha elegância no trote? Possivelmente, fora apenas um trote. Não te conheci, não te conhecerei. Aliás, tu já galopaste, pelo jeito... Já saíra campo a fora. Não me notou. Mas o registro aqui, gostaria de segurar tuas patas, por um momento pelo menos, mesmo que isso fosse rastejante. De repente, pode ser que ainda esteja ai, deixa-me sentir o teu coice ou outro sinal de presença? _ o que penetra neste silêncio melancólico entre o fim da pergunta infinita pela falta causal a iniciar uma resposta. O ponto de interrogação tem o formato da ferradura de cavalo, aberta. Várias perguntas seguidas e eu o liberaria do que prende o seu seguir. Tanta realidade nos separa, esse chão entre nós. Você poderia afundar, em vez de caminhar sobre mim. Não há como prová-lo nem conhecê-lo de outra maneira senão esta. Então vá, pode ir, siga teu rumo. Nem que você me tocasse, não tenho mais sentido para tal experiência.
                Ou eu poderia adivinhá-lo como lobo? Sim, um lobo enigmático que vem em busca de comida e depois some, obscuro e secreto, quase um lobisomem. Neste caso, então cultiva-me da terra: semeie, adube com tuas fezes que eu renasço encontrando passagem até ai, para o seu íntimo interior, inclusive, já que me devorarias como fera. Mas lobo não, se fosse já teria cavucado buracos e me descoberto, vasculhado tudo por aqui. Entretanto não fuçaste a presa, no máximo carimbou histórias ao mostrar as digitais com as patas no solo. Somente um contador lendário disfarçado de cavalobo, por isso nem de todo cavalo, nem lobo.
Muito tempo de silêncio empírico, só a mente querendo ultrapassar a matéria para descobrir algo lá em cima. Uma transmissão telepática, um grito metafísico, virtual, nada. Somente a marca pregada na memória e sentida no momento da reviravolta. Nesse lugar velho onde encontro essa luta para poder amá-lo e ser reconhecida por você, descubro o surgimento desse sentido de busca que renova meu ser. Então, reformo o meu corpo: vendi e comprei umas partes, criei ordens para governar melhor as minhas roupas, concertei meus cinco sentidos com ships, minhas células agora têm a potência da nanotecnologia e programei o meu cérebro virtualmente para eu não esquecer de acreditar na missão removedora da terra que nos separa. Nas unhas, pus bombas atômicas, assim provoco efeito reativo para você pelo menos saber que estive aqui por baixo o tempo todo, caso as minhas perturbações emocionais estiverem muito conflitantes e conturbarem demais toda a inquietação sentida desde que seu terror aconteceu.
                Mas cheia de esperar, no desespero, acabo te alcançando pelas unhas minadas. Essas garras desenvolvidas cuidadosamente, agora precisam servir para alguma coisa, já que não mais tenho somente aquela especulação desvairada e pensante para me proteger. Entre essas ruínas ancestrais de metal, surge esse bicho de minha cabeça. Com ganchos cravados a arranhar a terra, cavando pra cima e aterrorizando-me mais. Assim continuo a pensar ainda, mas a diferença é que agora consigo me agarrar nas pedras. Aliás, como inferi ser um bicho do outro lado? Só porque algo pesa sobre mim? Isso não quer dizer que sejam patas, necessariamente. Mas então, o quê? Hein? Talvez... Ou uma força jorrada, sobrenatural. Um homem, com massa relevante pra repercutir na minha posição de inferioridade, tão superior quanto as próprias camadas hierárquicas e geológicas. De repente, uma pedra, um meteorito.
Uma coisa está diagnosticada: minhas idéias se elevaram muito desde que vim para este plano mergulhado, assim como os sentidos se artificializaram. Como se sucedesse a inversão para o oposto, um avesso. Pois sempre inferi que profundezas e abismos fossem o lugar das sensações e renúncias, não da intelecção. A essa altura, o que o alto reserva senão instintos, então?
               Logo, o amor será o próximo sentido que enviarei aos altares, pela explosão apocalíptica atirada de minhas unhas. Pois já supus tanto para resolver essa curiosidade, que até a palavra curiosidade é algo que eu jamais recomendaria pra alguém que não quisesse perder de vista alguma possibilidade. O amor supre e abstrai a curiosidade, por ser constituído de todas as coisas possíveis. Já foram cavalo, lobo, o divino, toda a flora e fauna, ciência e História, mercadorias e até a liberdade solta pelos ares, e nada. Até agora, jogo tudo pro alto a captá-lo enquanto me prendo aqui, mas as palavras no ar pesam e voltam. O corpo está em decomposição, o sono foi demasiado, não há como levantar ou acordar, agora é objeto, desigual ao que não seja o próprio, em si mesmo. Nenhum movimento além da imaginação: sonho e pensamento, represensação. Aqui o amor ainda pode estar leviano, espero. Não possui gravidades. Mas como a esperança rouba muito de sua leveza, vou ficar por aqui, sem esperar que a curiosidade pese mais do que ele.



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