sábado, 24 de outubro de 2009

Olhar sobre os personagens

Aos atores de "Notícias da morte de Alberto da Silva", poema dramático de F. Gullar:

Um passeio de impressões minhas para expressar algumas das influências sentidas, resultantes do trabalho ou nem tanto, que exponho e espero que sirva como mais uma das referência que terão para criá-los:


Para o Adir,

Violinho

O atrevir da mente
no coração dos temidos
faz esse metido tímido
intervir nos videntes

Nos vestidos com juízo
pra esconder a morte presente
dão seu sentido como preciso
pra safarem o que mentem

Aos que a solução da morte
é não ter mais salvação
ele reve o soluçar da sorte
e revoluciona a ação

Nem sim nem não
ele viola a linha da memória
violina livremente a história
assume a liberdade do vão

Não é somente vazio
tocante e cortante
o seu contar com ironia
cheio do que é inquietante

E que aparece por cima do falar
além do contar a vida do morto
ou a morte do vivo, descontar
imagens distorce, reflete outro 


                  Ele esconde coisas quanto mais coisas conta. Ele conta a vida do morto descontando a morte dos vivos. Talvez queira pisotear na morte que carregamos, mas em vez disso ele somente sapateia e dança com palavras irônicas e chega mais longe do que se marchasse pra algum lugar. Ele não quer revolucionar, mas sim rever o soluçar. Parado pelos sapatos, ele alcança mais a vida dos outros do que se corresse. Não anda com os pés, mas quem passeia e faz a peça passar pelo tempo é sua fala, seu conto. Vão por essa ironia reclamadora, e o que move suas palavras são esses sapatos urbanos e brilhantes que vestiu e que prendem suas pernas, dali não sai mais, porém solta informações e um mundo de coisas contingentes que faz o espetáculo voar junto com a imaginação dele. A vida do personagem é essa crítica (estudo) que faz sobre o morto, ele é a sua obra, pois só existe graças ao morto. É a vida após a morte. Ele é o sonho do morto, o seu violino, de cordas bem aguçadas. Como música que nos toca, mas não porque conta algo, de fato e com todas as letras, mas sim porque indiretamente nos diz pela melodia irônica, quase um cantar... Seus sapatos e sua ironia correspondem, respectivamente, às suas ações e pensamentos: são as máscaras de brinquedo que ele conduz, tira e põe quando quer, mantendo-os sob controle: às vezes pensamentos e ações contidos, noutras revelados. Ele sabe muito sobre o morto e, mais ainda sobre os vivos.





Para a Sassá,


Pena de vida

Na queda delirante
faço nosso enxoval de flores
pra ainda ser a praticante
do teu véu de sonhos

Fostes minha vida
pois a realizava
murchou-me das dores
fez-me confortada

Quão fortalecida
choro nossa alveza
com tristeza só de ida
no lar ainda há riqueza

Paredes límpidas e puras
sua transparência construiu
você até morto me segura
confiou-me tua vida entregue
guardou-a segura, não possuiu

Agora vivo por tua morte
pelo que não sonhou
choro chuvas a regar
o que não pôdes plantar

Pois tu me desenterrou
eu era terra e você ar
pessimismo mais delírios
satisfaziam meu realizar

Casamento florecido
com a brancura dos desejos
vazios e sem ruídos
que expiraram meu falecido

Deixo-te ir, marido
pois pedes meu viver
a carregar o ocorrido
atiro em sonhos de morrer

E o peso os puxa ao chão
se fincam no assoalho
semeando no cimento
meus olhares de orvalho

A cultivar o matrimônio
e agora colher o antônimo
de ser mulher da morte
além de ter sido na vida

Infinito encontro oposto
sempre implicou um ao outro
eu brotava do teu querer
você apodrecia do meu sofrer

Nunca mais insegura
condenada à raiz da tortura
do amor que não mais se discute
até que a morte de novo nos junte


               Ela acredita na morte. Porque a morte a faz como está agora, compreende a nova situação do marido, mas quer continuar acompanhando-o, não pode fazer outra coisa além disso, continua a viver para isso. Nada a importa mais, a existência dela agora é assegurada pelo que o marido lhe deixou, nem quando morto ele a deixou insegura, ele ainda segura a tua vida com o seguro de vida que lhe deixou, isso a deixa mais perto dele e suficientemente confiante pra deixá-lo ir, e mesmo assim continuar cúmplice dele... Ele não a deixou, e por isso ela pode lhe deixar ir. Ela existe agora pelo pedido deixado por ele em forma de vida... Ele é o único ser mesmo morto, que a faria viver, agora mais vivo do que todos os outros mortos e vivos! Ele sonhava com coisas poucas na vida e agora ela vai realizar muita coisa por ele. Passa a ser não só a mulher da vida dele, como também de sua morte. Até que a morte os una, não os separe.






Para o Bruno,


Vermestre-cuco

Estou aqui, presente
seja morto ou vivo
cutuco qualquer gente
e de Terra não me privo

Porque cavuco o mundo
caminho dentro da matéria
e as amoleço, no fundo
esburaco o vazio da miséria

Esse lugar pobre de tempo
que nunca é
é o chegar ou o que foi
terreno de vento

O lamento pra consolo
vem dado pela gentil morte
e o homem é pedaço do bolo
que aceitamos todo dia, aos lotes

Em potes lacrados
vai-se junto a terra e o ar
forço a vida, preencho o lugar
respira-se morte, estado

Nos terrestres assustados
vou pelas narinas carentes
busco cheiro da vida com dentes
onde adentro mais tragado

Sou bactéria a roer o ar
que vos faz viver
sobre o me matar
sufoca-me respirando prazer

Mas alimento-me de morte
não morro, eis minha sorte
mato vida, a morte, sobre vivo
e pelas duas que me ativo


                 Ele não acredita na morte. Não há como morrer, a vida já está morta. A morte não é somente mais uma parte da vida. A morte já está viva na vida, e a vida, morta. Viva a morte! Morto ou vivo, vivo ou morto, tanto faz. É tudo tão só terra, só matéria e chão que se pode fingir de morto a qualquer momento da vida que ninguém vai notar, a não ser quem ainda acreditar em superstições... A única diferença existente pra diferenciar um morto de um vivo é o cheiro. O resto é indiferença, tudo igual. Ele é a vida durante a morte e por isso se aproxima muito dela. Alimenta-se dela, como as bactérias. Ele é a expressão do tempo presente da morte: quem morre não tem mais tempo, pois o tempo da morte nunca é o hoje, é o chegar ou o que já foi, é um acontecimento que não permanece a não ser através das bactérias que os engolem numa junção de cadáveres ruídos. Agora estão pelos ares e respiramos morte por meio delas no presente. Ele ocupa todo o espaço, como as bactérias no ar e é a imunidade em pessoa: além de morte e vida, por sobreviver das duas, cura vidas e lambe mortes.



Para Tamiris,


Programado

Armários esgotam
sensações dobradas
penduradas em cabides
as gavetas manobram
pra não amarrotar palpites

Opiniões bem passadas
ao vapor do ferro
assim veste seu terno
sai a porta, beija a amada

Vai à chegada
volta ao sair
e não sai do vir
enfim, no nada

‘Vivo, vou
envolto de vultos
não me estou
sumi no tumulto’

Rapitado pelo rápido
só a velhice o seqüestra
o novo é sempre inválido
por um vazio que stressa

Feriado, relaxa o letrado
joga cruzada nas palavras
monta o chinelo enamorado
e demite todas travas

Compra enlatados de amor
pra festejar o cansaço
de tudo entregue à toa
e tabelado em pedaços
depois lacrados de humor

Fim de um dia
e o sonho ainda lá
enquanto sempre dormia
sonhava em acordar
e o transe vago insistia


         

             















           
              
                   Ele vive na morte. Em São Paulo, a cada dia de sua vida, morre. Morre ao dormir, ao acordar, ao ler as notícias violentas, ao trabalhar pra nada, ao cumprimentar o nada. Transita pelo mundo preso pelo nada que guarda em sua bolsa pra não perder, e pede o mesmo nada sempre, e sente falta de nada quando nada tem. Será que ele não quer nada? Vazio pesado que o faz sequer saber que existe outra coisa a não ser o automatismo no sonhar: " bom dia, em que posso ajudar? Pois não, posso ajudar? Posso? Em que? Deixa, por favor", frases de desespero dos sentimentos enjaulados no dia-a-dia que "queima e corrói sua vida, não alcança seus desejos" e não chega nem perto do coração pois há grades e portas de metrô a levar seus sonhos já atrasados para mais um dia de trabalho, e ele só ouve violinos chorando por trás do barulhos dos trilhos. É um violino sem cordas e as pessoas não o ouvem, muito barulho no trânsito e silêncio nas pessoas. Ele pode ler as notícias diárias ou gritar que precisa viajar e namorar que são as mesmas coisas. Coisificaram-no. És um esqueleto banal e duro, com carne mole em volta... Mas deseja a morte das banalidades, violar a linha, violinar, ver lindos das. Está entre a vida e a morte, não porque se acidentou, mas porque é um acidente, coitado: não vive nem morre. Desvive, desmorre, desmorona e desvia o deslize. Ele não existe mais não porque morreu, mas porque viveu a pôr o "des" na frente de tudo, se destruindo. Talvez a morte o faça diferente, o faça mais vivo ou outra coisa que não seja essa vida. Ele a deseja e a repudia. É a morte durante a vida e a vida durante a morte, um fantasma. Mas talves nunca o tenham ouvido e visto, se importado tanto com ele quanto agora, invisível mas citado como só mais um morto no mundo dos mortais desligados.



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